24/04/2025

Apelação e Competência Recursal: A Usurpação do Juízo a quo e a Consolidação do Tema 1267/STJ



1. Introdução

              

O julgamento do Tema 1267 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.072.867/MA, REsp 2.072.868/MA e REsp 2.072.870/MA) resgata com rigor a necessidade de reafirmar os fundamentos estruturantes do sistema recursal instituído pelo Código de Processo Civil de 2015. Muito além de uma controvérsia pontual sobre técnica processual, a discussão revela uma tensão de fundo entre o respeito à competência funcional dos órgãos jurisdicionais e práticas forenses ainda marcadas por resquícios do regime anterior.

No centro do debate está a delimitação da competência para o juízo de admissibilidade da apelação — um tema que, embora emoldurado por normas processuais, toca diretamente garantias fundamentais como o contraditório, o devido processo legal e o acesso efetivo às instâncias superiores. O novo CPC, ao concentrar essa atribuição no tribunal ad quem (art. 1.010, § 3º), promoveu uma ruptura consciente com a lógica do Código de 1973, deslocando o poder de filtragem recursal do juízo de primeiro grau para o órgão competente para julgar o mérito do recurso.

O que se viu, contudo, foi uma resistência prática à plena aplicação dessa norma. Muitos juízos de origem, em descompasso com a literalidade do dispositivo e com o modelo processual vigente, continuaram a exercer controle prévio da admissibilidade recursal, obstando o seguimento da apelação com base em pressupostos que, por determinação legal, deveriam ser analisados pelo tribunal. Essa prática — que parecia apenas um detalhe de gestão procedimental — encerra uma séria deformação do desenho constitucional do processo, pois usurpa competência, compromete a isonomia procedimental e fragiliza a integridade da jurisdição.

Nesse cenário, a definição firmada pela Corte Especial — no sentido de que o juízo de primeiro grau não detém competência para inadmitir a apelação, e que eventual indeferimento configura usurpação de competência, ensejando reclamação nos termos do art. 988, I, do CPC — não apenas corrige uma distorção prática, mas reafirma a centralidade dos tribunais como instâncias de controle técnico-jurídico dos recursos e guardiões do sistema de precedentes.

Importa destacar, ademais, que essa questão não se restringe ao plano técnico dos operadores do direito. O modo como os recursos são processados impacta diretamente o jurisdicionado, que tem o direito não apenas a recorrer, mas a ser julgado por quem tem competência para tanto. O indeferimento prematuro da apelação pelo juízo de origem constitui violação indireta ao acesso à justiça, à ampla defesa e ao devido processo legal, todos de estatura constitucional.

É nesse contexto que o presente artigo se propõe a examinar — à luz do recente precedente qualificado — os limites legais e constitucionais da atuação judicial na admissibilidade recursal, os instrumentos processuais disponíveis para correção de vícios dessa natureza e os reflexos sistêmicos que o tema projeta sobre a coerência e integridade do processo civil brasileiro.

A análise será feita com base na legislação, na jurisprudência consolidada e sob o olhar crítico da doutrina e da filosofia do direito, buscando compreender, mais do que a norma em si, os valores que ela visa proteger e o modelo de justiça que deve sustentar.

               2. O Novo Modelo Recursal e a Competência Exclusiva do Tribunal

A promulgação do Código de Processo Civil de 2015 representou uma guinada no tratamento normativo conferido ao sistema recursal, especialmente quanto à redistribuição funcional das competências para a análise dos pressupostos recursais.

No tocante à apelação, a alteração foi não apenas estrutural, mas paradigmática: o novo modelo afasta expressamente o juízo de admissibilidade da esfera de competência do juiz de primeiro grau, atribuindo-o exclusivamente ao tribunal ad quem, conforme redação literal do art. 1.010, § 3º, do CPC:

“Cumprido o disposto nos §§ 1º e 2º, o juiz encaminhará os autos ao tribunal, independentemente de juízo de admissibilidade.”

 

A regra em questão não deixa margem a interpretações extensivas nem espaço para filtragens prévias pelo juízo de origem. A opção legislativa foi clara e deliberada: a função de verificar os pressupostos de admissibilidade da apelação — como tempestividade, regularidade formal, preparo e legitimidade — é atribuída ao órgão jurisdicional competente para apreciar o mérito recursal. Trata-se de uma delimitação funcional que visa assegurar racionalidade procedimental, coerência institucional e respeito à autoridade do tribunal.

Essa modificação rompe com a tradição do CPC/1973, em que o juiz a quo realizava o juízo de admissibilidade, o que frequentemente gerava decisões contraditórias, recursos paralelos e insegurança jurídica. O novo arranjo normativo busca, justamente, eliminar esse ponto de atrito e estabelecer uma linha contínua entre a interposição do recurso e sua apreciação meritória, promovendo maior fluidez processual e integridade na jurisdição recursal.

Mais do que um detalhe técnico, o dispositivo carrega consigo uma carga axiológica relevante, pois visa evitar a indevida concentração de poder decisório nas mãos do juiz sentenciante, impedindo que o mesmo magistrado que decidiu a causa exerça controle sobre a possibilidade de reexame da própria decisão.

A separação entre a jurisdição de origem e a jurisdição recursal, nesse contexto, não é apenas uma exigência funcional — é uma salvaguarda de imparcialidade e um mecanismo de distribuição equilibrada do poder dentro do sistema judicial.

Além disso, a competência exclusiva do tribunal para o juízo de admissibilidade das apelações está em consonância com a lógica do sistema de precedentes vinculantes introduzido pelo próprio CPC/2015.

Ao centralizar nos tribunais a análise dos requisitos recursais, o legislador pretendeu garantir maior controle institucional sobre o acesso aos órgãos colegiados, permitindo que esses tribunais exerçam com plenitude seu papel na formação e consolidação de jurisprudência estável, íntegra e coerente (art. 926, CPC).

Dessa forma, quando o juiz de primeiro grau, contrariando o art. 1.010, § 3º, se arvora a inadmitir a apelação com base em seus próprios critérios sobre regularidade formal ou ausência de interesse recursal, usurpa competência funcional expressamente atribuída ao tribunal, ferindo de forma direta a legalidade, a coerência do sistema e a própria lógica recursal desenhada pelo novo Código.

É nesse exato ponto que o STJ, no julgamento do Tema 1267, intervém para reafirmar a divisão de competências como valor jurídico e como garantia institucional do processo. O que está em jogo, portanto, não é apenas a interpretação de um parágrafo legal, mas a efetivação de uma concepção moderna de jurisdição, baseada na colaboração, na deferência entre instâncias e na estruturação racional do poder jurisdicional.

3. A Atuação Indevida do Juízo a quo e a Medida Cabível: Reclamação

 

A controvérsia apreciada no Tema 1267 do STJ trouxe à tona uma prática que, embora reiterada em alguns segmentos da jurisdição nacional, não encontra respaldo normativo e revela inequívoca afronta à lógica do sistema processual em vigor: trata-se da inadmissão de apelações pelo juízo de primeiro grau, com fundamento em alegadas irregularidades formais ou ausência de preenchimento dos pressupostos recursais.

Em resposta a essa prática, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os Recursos Especiais repetitivos de n.º 2.072.867/MA, 2.072.868/MA e 2.072.870/MA, firmou posição inequívoca: tal conduta configura usurpação de competência do tribunal ad quem. Isso porque, conforme delineado no art. 1.010, § 3º, do CPC/2015, é de competência exclusiva do órgão recursal exercer o juízo de admissibilidade da apelação. A atuação do juiz a quo, ao impedir o prosseguimento do recurso, invade competência alheia e compromete a integridade da função jurisdicional.

Para esses casos, a medida processual adequada — e agora consolidada pelo STJ como o único instrumento eficaz e juridicamente correto — é a reclamação constitucional, com fundamento no art. 988, I, do CPC, que permite o uso do instituto quando houver "usurpação de competência de tribunal".

O acórdão paradigmático também acolheu expressamente o entendimento doutrinário que já vinha sendo amplamente difundido por estudiosos do processo civil, em especial no âmbito do Fórum Permanente de Processualistas Civis, por meio do Enunciado 207, que dispõe:

“Cabe reclamação, por usurpação da competência do tribunal de justiça ou tribunal regional federal, contra a decisão de juiz de 1º grau que inadmitir recurso de apelação.”

 

A consagração jurisprudencial desse enunciado reforça o compromisso do STJ com a uniformização interpretativa e o respeito ao modelo procedimental estabelecido pelo legislador. A decisão confere, portanto, estabilidade à jurisprudência, orienta a atuação da magistratura de primeiro grau e pacifica a via recursal cabível.

Trata-se, aqui, de uma reafirmação do princípio da legalidade estrita na condução do processo jurisdicional, e, ao mesmo tempo, do resguardo da competência funcional dos órgãos superiores, que não pode ser usurpada sob pretexto de controle prévio de requisitos recursais.

Do ponto de vista sistêmico, essa orientação cumpre relevante função de correção interna: fornece ao jurisdicionado um instrumento célere e adequado para destrancar apelações indevidamente obstadas, sem que seja necessário recorrer a expedientes extraordinários ou pouco apropriados, como mandado de segurança, correição parcial ou até agravos fora do rol taxativo.

Sob o viés constitucional, a orientação firmada também concretiza a garantia do acesso efetivo à jurisdição plena (art. 5º, XXXV, CF) e protege o jurisdicionado contra atos que, embora travestidos de legalidade formal, subvertem a repartição de competências estabelecida por lei federal.

Assim, a reclamação deixa de ser apenas um instrumento residual para se consolidar como mecanismo central de preservação do modelo recursal concebido pelo CPC/2015, reafirmando a necessidade de rigor técnico e deferência institucional entre os graus de jurisdição.

4. A Inadequação do Agravo de Instrumento na Fase de Conhecimento

              

Uma das contribuições mais relevantes do julgamento do Tema 1267/STJ reside na explicitação, com clareza e segurança, da inadequação do agravo de instrumento como meio de impugnação da decisão do juiz de primeiro grau que inadmite a apelação. A Corte Especial do STJ, com base em interpretação sistemática e finalística do art. 1.015 do CPC, afastou definitivamente essa possibilidade.

De acordo com a redação do referido dispositivo, o agravo de instrumento é cabível apenas nas hipóteses expressamente previstas em seus incisos e, por força da jurisprudência dominante, em situações excepcionais de urgência que inviabilizem a eficácia de um eventual provimento futuro. Essa mitigação, introduzida pela jurisprudência a partir do Tema 988/STJ, não autoriza interpretação extensiva ou analógica para abarcar decisões que, na prática, configuram usurpação de competência.

O STJ deixou claro que a inadmissão da apelação pelo juízo de origem não é mera decisão interlocutória: trata-se de uma atuação inválida, que extrapola os limites legais da jurisdição do primeiro grau, pois versa sobre matéria de competência exclusiva do tribunal. Em outras palavras, não se está diante de decisão que possa ser corrigida por agravo, mas de um vício de ordem funcional, cuja natureza implica em nulidade absoluta do ato processual por incompetência.

Dessa forma, a tentativa de manejar agravo de instrumento, correição parcial ou mandado de segurança contra tal decisão não se coaduna com a sistemática recursal vigente. Tais medidas, além de inadequadas à luz da jurisprudência atual, poderiam gerar sobreposição de competências, multiplicação de recursos paralelos e insegurança quanto à tramitação do processo.

O julgamento do Tema 1267, portanto, opera como um marco de racionalização e uniformização procedimental, orientando a comunidade jurídica quanto ao uso correto dos instrumentos processuais. A solução adequada — e agora indiscutivelmente firmada — é a reclamação com base no art. 988, I, do CPC, cujo escopo é justamente proteger a competência do tribunal em face de usurpações e garantir o correto funcionamento do sistema jurisdicional.

A inadequação do agravo, nesse contexto, reforça a própria lógica do modelo recursal desenhado pelo CPC/2015, que é baseado em especialização funcional, respeito à hierarquia jurisdicional e contenção da litigiosidade recursal excessiva. Não se trata de dificultar o acesso à instância superior, mas de garantir que esse acesso se dê pelas vias apropriadas, conforme a estrutura previamente delineada pelo legislador.

Admitir o agravo de instrumento nessas hipóteses seria, em última análise, legitimar um desvio da norma legal sob o pretexto da urgência, invertendo a racionalidade do sistema. Pior: implicaria validar a própria conduta ilegal do juízo de origem, que, ao inadmitir a apelação, já atua fora de sua competência.

Portanto, o acórdão paradigmático não apenas reafirma a exclusão dessa hipótese do rol do art. 1.015, como também previne a erosão institucional das normas de competência, fortalecendo a integridade do sistema recursal e a previsibilidade na sua aplicação.

5. Modulação de Efeitos e o Princípio da Fungibilidade Recursal

 

Consciente da instabilidade jurisprudencial que precedeu a consolidação do entendimento firmado no Tema 1267, o Superior Tribunal de Justiça adotou uma postura prudente e equitativa ao optar pela modulação dos efeitos da decisão, permitindo que a nova orientação não retroagisse para prejudicar recursos manejados de boa-fé sob bases antes consideradas plausíveis.

Dessa forma, a Corte reconheceu que, até o momento da publicação do acórdão, havia dúvida interpretativa razoável quanto ao meio processual adequado para impugnar a decisão do juízo de primeiro grau que inadmitisse a apelação. Por isso, admitiu, em caráter excepcional, que recursos como agravo de instrumento, correição parcial ou mesmo mandado de segurança fossem recebidos como reclamação, desde que ainda pendentes de julgamento definitivo e sem trânsito em julgado.

Essa solução dialoga diretamente com o princípio da fungibilidade recursal, positivado no art. 1.009, § 1º, do CPC, segundo o qual o erro na interposição de recurso não prejudica sua admissibilidade, desde que haja dúvida objetiva sobre o cabimento e ausência de má-fé da parte.

 

“Art. 1.009. § 1º: Serão considerados interpostos os recursos para os fins legais, mesmo quando a parte houver se equivocado quanto ao nome ou à classificação do recurso cabível, desde que preenchidos os requisitos de sua interposição.”

 

Essa diretriz não apenas preserva a boa-fé do jurisdicionado — que atuou com base em orientação doutrinária e jurisprudencial não pacificada à época — como também evita o sacrifício desnecessário do direito à ampla defesa e ao duplo grau de jurisdição por motivos meramente formais.

Do ponto de vista constitucional, a modulação prestigia a segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF) e reforça a função integradora do STJ, evitando o tratamento desigual entre jurisdicionados em função do momento temporal de interposição de seus recursos. Trata-se de um gesto de responsabilidade institucional, que reconhece o caráter evolutivo da jurisprudência e garante que a transição interpretativa não produza efeitos abruptos, incoerentes ou punitivos.

Além disso, a adoção da fungibilidade nesses casos específicos reafirma a importância de um processo civil substancialmente justo, no qual a forma existe para proteger o conteúdo e não para impedir sua realização. Como já advertia Liebman, as formas processuais devem servir à função de garantir a decisão de mérito — e não serem convertidas em armadilhas formais que legitimam a injustiça.

Assim, a modulação de efeitos promovida pelo STJ não enfraquece a tese firmada — ao contrário, fortalece sua aplicação racional e responsável, assegurando que o novo entendimento se projete para o futuro com coerência, sem desprezar a boa-fé processual e o princípio da proteção da confiança legítima.

 

6. Considerações Finais: O Papel do STJ e a Efetividade do Sistema Recursal

 

               O julgamento do Tema 1267 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça representa não apenas a consolidação de um entendimento técnico-processual: ele expressa um compromisso institucional com a integridade do sistema de justiça e com os fundamentos filosóficos que sustentam o devido processo legal.

Ao afirmar que o juízo de admissibilidade da apelação é competência exclusiva do tribunal ad quem, o STJ reafirma um valor essencial ao processo civil contemporâneo: a repartição racional de competências como garantia de imparcialidade e como instrumento de contenção do poder estatal. Trata-se de um exemplo claro do que Ronald Dworkin denominava de governar por princípios: aplicar o direito não apenas por meio de regras, mas respeitando valores como coerência, igualdade e respeito institucional.

A decisão também concretiza uma concepção material de justiça. Como bem alertava Gustav Radbruch, a legalidade que afronta de forma evidente a justiça cessa de ser direito. Ora, permitir que o juiz que decide a causa exerça controle sobre o próprio reexame de sua decisão seria romper com o ideal de imparcialidade que a própria estrutura processual busca preservar. Quando o STJ corrige essa deformação, resgata a racionalidade interna do sistema, evitando que a forma se sobreponha ao conteúdo e que a autoridade funcional seja exercida fora de seus limites legítimos.

Nesse sentido, também ressoa a advertência clássica de Norberto Bobbio: um direito que não se efetiva é um direito apenas formal. A norma do art. 1.010, § 3º, do CPC, só adquire valor real se aplicada com rigor — e se for protegida contra interpretações desviantes que, sob o pretexto de celeridade ou conveniência prática, comprometem garantias como o contraditório, o duplo grau de jurisdição e a imparcialidade decisória.

Do ponto de vista ético-jurídico, a decisão revaloriza o papel do processo como ambiente institucional de justiça distributiva, conforme ensina Aristóteles em sua Ética a Nicômaco: a equidade é a justiça adaptada ao caso concreto, e a função jurisdicional deve ser exercida com equilíbrio, respeito aos limites e consciência da posição de autoridade.

Ao devolver ao tribunal o controle sobre os requisitos da apelação, o STJ não apenas interpreta a lei, mas restabelece o justo lugar de cada órgão jurisdicional no processo democrático da jurisdição.

Além disso, a modulação de efeitos revela maturidade institucional. Ao reconhecer a dúvida objetiva anteriormente existente quanto ao recurso cabível, o Tribunal atua em consonância com o princípio da confiança legítima, dimensão valorativa diretamente ligada à segurança jurídica e à boa-fé objetiva. Em vez de sancionar formalismos ou punir a parte que agiu de maneira coerente com a jurisprudência do momento, o STJ acolhe a dimensão humana do processo, reconhecendo que o direito, como ensinava Miguel Reale, se dá sempre na confluência entre fato, valor e norma.

Portanto, o Tema 1267 não apenas corrige uma anomalia técnica. Ele afirma um modelo de processo civil comprometido com a justiça institucional, com a função ética da jurisdição e com a defesa da estrutura democrática do sistema de recursos. Sua importância não reside apenas na tese fixada, mas na postura interpretativa que adota: técnica, prudente, fundamentada e profundamente fiel aos princípios que estruturam o Estado de Direito.

Assim, como já ensinava Calamandrei, o processo é o caminho pelo qual o direito se realiza. Com essa decisão, o STJ reafirma que esse caminho não pode ser desviado por atalhos autorreferentes ou por práticas incompatíveis com o ordenamento — deve, sim, ser trilhado com rigor, justiça e respeito aos fundamentos filosófico-jurídicos que legitimam a própria existência do processo.

 

Referências

 

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores).

 

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

 

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

 

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução: Edgard de Moura Bittencourt. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Comentários ao Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2023. v. 2.

 

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo Civil. Tradução: José Frederico Marques. São Paulo: Saraiva, 1973.

 

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria geral do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. v. 3.

 

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2016.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). EREsp 2.072.867/MA, EREsp 2.072.868/MA, EREsp 2.072.870/MA. Rel. Min. Nancy Andrighi. Corte Especial. Julgado em 24 abr. 2024. DJe 05 jun. 2024.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Tema Repetitivo n. 1267. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/temas-repetitivos . Acesso em: abr. 2025.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Tema Repetitivo n. 988. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/temas-repetitivos. Acesso em: abr. 2025.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Súmula n. 7. A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/ . Acesso em: abr. 2025.

23/04/2025

Honorários Advocatícios em Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica: A Tensão entre a Equidade e a Valorização da Advocacia



Por Luiz Fernando Pereira – Advogado e Consultor Jurídico. Especialista em Direito Processual Civil, com sólida formação nacional e internacional. Atua em contencioso estratégico, consultoria jurídica, Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito Público, com ênfase na defesa de servidores públicos, inclusive em processos administrativos disciplinares. Advogado junto ao CREMESP. Atua como advogado dativo perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e a Justiça Federal. Foi advogado dativo do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e das Comissões de Direito Processual Civil, Direito Constitucional e Administrativo, Direito Médico e da Saúde, e Acidente do Trabalho da OAB/SP. Mantém o blog jurídico drluizfernandopereira.blogspot.com e canal próprio no YouTube, onde compartilha conteúdo técnico sobre temas contemporâneos do Direito.


Artigo inédito a ser submetido à revista especializada em Direito Processual.

 

1. Introdução

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), expressamente positivado no Código de Processo Civil de 2015 (arts. 133 a 137), consolidou-se como uma das mais relevantes inovações processuais da última década. Trata-se de um instrumento que visa conferir efetividade à execução, ao permitir que o credor responsabilize diretamente pessoas naturais ou jurídicas ligadas ao devedor principal, mediante demonstração de desvio de finalidade ou confusão patrimonial — elementos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica.

Na prática forense contemporânea, o IDPJ tornou-se uma ferramenta recorrente, especialmente em execuções de natureza cível, empresarial e fiscal, funcionando como mecanismo de superação dos limites formais entre a pessoa jurídica e seus membros, em situações em que o patrimônio da empresa não é suficiente para satisfazer a dívida executada.

O crescente protagonismo do incidente, contudo, trouxe consigo questões jurídicas ainda não suficientemente equacionadas pela jurisprudência e pela doutrina, especialmente no que tange à remuneração do trabalho advocatício quando a atuação se dá exclusivamente na defesa do terceiro incluído no polo passivo do feito executivo.

O vácuo normativo se revela mais agudo quando se verifica que, na maioria das vezes, o profissional é contratado apenas para atuar nesse incidente, sem qualquer vínculo com a execução principal ou com eventual embargos. Em tais situações, não há proveito econômico direto mensurável nos moldes clássicos da sucumbência, o que tem levado os tribunais a aplicarem, de forma quase automática, o art. 85, § 8º do CPC, que permite o arbitramento dos honorários por equidade nas hipóteses em que o valor da causa é irrisório, inestimável ou inexistente.

Essa solução, embora normativamente válida, tem gerado profunda inquietação na comunidade jurídica, pois vem sendo interpretada de forma redutora, resultando na fixação de honorários em patamares simbólicos, muitas vezes desconectados da real complexidade do trabalho realizado.

O que se vê, na prática, é uma tendência à padronização de valores baixos — frequentemente arbitrados entre R$ 1.000,00 e R$ 5.000,00 — independentemente da carga probatória exigida, da responsabilidade envolvida ou da relevância econômica da execução principal.

Nesse contexto, surge a pergunta que motiva este artigo: é juridicamente aceitável — e eticamente defensável — que a atuação autônoma e tecnicamente qualificada em um IDPJ seja sistematicamente remunerada de forma simbólica, sob a justificativa de ausência de proveito econômico direto?

Tal questionamento não é meramente retórico, mas está no cerne da discussão sobre a dignidade da advocacia, a função jurisdicional e os critérios de justiça na fixação de honorários advocatícios.

Como se demonstrará ao longo deste estudo, o problema está menos no uso da equidade como critério — que é legítimo e necessário em diversos contextos — e mais na forma com que ela vem sendo aplicada, desprovida de critérios objetivos, de base argumentativa densa e, principalmente, de sensibilidade à realidade da atuação profissional. Ao tratar o IDPJ como um apêndice da execução e ao desconsiderar a natureza contenciosa e estratégica do incidente, o Judiciário, muitas vezes, incorre naquilo que Gustav Radbruch[1] chamaria de uma “injustiça legal” — uma aplicação formal da norma que contraria os valores materiais da justiça e da proporcionalidade.

Neste artigo, busca-se então revisitar o tema à luz do direito processual civil, da jurisprudência recente do STJ e de fundamentos filosóficos do direito, com o objetivo de contribuir para a construção de uma leitura mais coerente, equilibrada e valorizadora da atuação advocatícia nos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.

 

2. A Equidade como Critério de Arbitramento: Limites e Pressupostos

 

O art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil de 2015, estabelece que:

“Nas causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico, ou quando o valor da causa for muito baixo, os honorários serão fixados por apreciação equitativa, observando-se o disposto nos incisos do § 2º.”

 

Esse dispositivo, de inspiração nitidamente principiológica, visa evitar distorções remuneratórias em hipóteses nas quais não seja possível mensurar objetivamente o benefício econômico obtido pela parte vencedora, como ocorre em ações declaratórias, processos de natureza não patrimonial ou, como no caso ora analisado, incidentes processuais com conteúdo jurídico relevante, mas sem repercussão econômica direta mensurável.

Contudo, ao contrário do que muitas vezes se verifica na prática judicial, a equidade aqui prevista não opera como cláusula aberta desvinculada de parâmetros. Ao contrário: ela reclama do julgador um juízo de ponderação ancorado nos critérios objetivos estabelecidos pelo § 2º do mesmo artigo, os quais permanecem obrigatórios mesmo diante da dificuldade de quantificação do proveito.

Assim, ainda que se reconheça a pertinência da utilização da equidade como técnica de fixação de honorários em contextos de baixa liquidez econômica, é fundamental compreender que a sua aplicação exige o devido rigor argumentativo e o compromisso com a valorização substancial da atuação advocatícia. Em outras palavras, o arbitramento por equidade não pode ser convertido em mecanismo de desvalorização do trabalho jurídico sob o pretexto de ausência de base econômica objetiva.

O que se observa em muitos julgamentos, porém, é uma tendência perigosa à uniformização simbólica: valores entre R$ 1.000,00 e R$ 5.000,00 são arbitrados de maneira quase automática, independentemente do grau de complexidade da causa, do tempo despendido, da relevância jurídica da tese sustentada e do impacto direto que o êxito possui para o cliente. Essa prática revela não um uso criterioso da equidade, mas sim uma banalização do instituto, incompatível com os postulados da proporcionalidade, da dignidade da advocacia e do contraditório substancial.

Nesse ponto, a equidade prevista no art. 85, § 8º, do CPC deve ser compreendida como um método de compensação, jamais como um pretexto para subestimar a atuação advocatícia”. Ou seja, o instituto deve operar como um recurso técnico voltado à justa remuneração em hipóteses de difícil mensuração, e não como justificativa para arbitramentos simbólicos e dissociados da realidade da causa[2].

É importante destacar que a equidade no processo civil brasileiro não é sinônimo de discricionariedade ilimitada. Trata-se de um critério jurídico que, por sua própria natureza, exige ponderação entre fatores concretos do caso e a aplicação proporcional da norma, conforme a tradição civilista e a matriz principiológica do CPC/2015. O julgador não pode, sob o manto da equidade, decidir com base apenas em sua impressão subjetiva sobre o valor da atuação, ignorando os elementos objetivos que o próprio ordenamento impõe.

A aplicação da equidade como substituta do raciocínio técnico compromete, inclusive, a previsibilidade do sistema, e isso afeta diretamente a segurança jurídica nas relações contratuais entre advogado e cliente, pois elimina a capacidade de prever — ainda que minimamente — os padrões de remuneração judicial.

O resultado é um ciclo vicioso: valores simbólicos arbitrados judicialmente passam a servir como parâmetro informal para contratos futuros, produzindo, ao longo do tempo, o achatamento sistêmico dos honorários sucumbenciais.

No contexto do IDPJ, isso se agrava. Como se trata de um incidente de natureza contenciosa, com rito próprio, carga probatória autônoma e consequências patrimoniais severas para o terceiro indevidamente incluído no polo passivo da execução, a atuação do advogado não pode ser comparada, em termos de esforço técnico e impacto, à mera manifestação incidental.

É, na prática, um litígio específico dentro do processo, que exige estratégia processual, análise documental aprofundada e, muitas vezes, até mesmo a produção de prova pericial ou testemunhal.

Dessa forma, a escolha pela equidade deve ser acompanhada da demonstração explícita dos fatores objetivos considerados para a fixação do valor. A ausência dessa justificativa fundamentada viola não apenas o art. 85, § 2º, do CPC, mas também o dever constitucional de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88), abrindo margem para críticas doutrinárias e institucionais quanto à legitimidade da fixação arbitrária.

 

3. A Jurisprudência do STJ e o Desafio da Uniformização

A questão da fixação de honorários advocatícios por apreciação equitativa, em especial nos casos de atuação restrita ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ganhou contornos de repercussão nacional com o julgamento do EREsp 1.880.560/RN, pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Naquele leading case, a Corte firmou entendimento no sentido de que, quando a atuação do patrono limitar-se à discussão sobre a legitimidade passiva, sem impugnação ao crédito, e não houver proveito econômico direto ou quantificável, a fixação dos honorários deve observar o disposto no art. 85, § 8º, do CPC, ou seja, ser feita com base em equidade[3].

A tese jurídica reafirma a linha interpretativa majoritária no Tribunal, que reconhece a possibilidade de arbitramento equitativo em hipóteses de indeterminação do valor econômico envolvido. No entanto, a aplicação concreta dessa tese tem gerado críticas substanciais na doutrina e entre os operadores do direito, em razão da ausência de balizas normativas claras que orientem o magistrado na fixação do quantum devido.

Em outras palavras, o problema não reside propriamente na tese fixada — que é juridicamente defensável —, mas na ausência de critérios uniformes, objetivos e transparentes que permitam aplicar a equidade sem que isso implique, na prática, na atribuição de valores simbólicos ou meramente protocolares. Tal realidade se agrava quando se observa que, em diversos julgados, os honorários arbitrados em sede de IDPJ não ultrapassam a faixa de R$ 2.000,00 a R$ 5.000,00, ainda que o incidente envolva valores de execução milionários e atuação altamente especializada.

A problemática ganha contornos ainda mais delicados diante do obstáculo recursal imposto pela Súmula 7 do STJ[4], que veda o reexame de matéria fático-probatória em sede de recurso especial. Isso significa que, uma vez fixados os honorários por equidade na instância ordinária, a possibilidade de revisão em instância superior é virtualmente nula, salvo em hipóteses excepcionais de manifesta violação literal da lei ou inexistência de fundamentação. Na prática, portanto, a decisão do juízo de origem torna-se definitiva quanto ao valor da verba honorária, mesmo quando flagrantemente desproporcional.

Certamente, esse fenômeno gera um paradoxo sistêmico preocupante: embora o art. 85 do CPC de 2015 tenha sido concebido para reforçar o caráter remuneratório e digno da verba honorária, o uso indiscriminado da equidade, aliado à rigidez recursal, fragiliza o próprio conteúdo normativo da regra, esvaziando o seu sentido protetivo original.

Além disso, a ausência de diretrizes interpretativas mais densas favorece a heterogeneidade decisória entre os tribunais, resultando em uma jurisprudência errática, que compromete a igualdade material entre jurisdicionados e a previsibilidade contratual na advocacia. Há situações, por exemplo, em que a mesma atuação técnica gera honorários de R$ 1.000,00 em um tribunal estadual e de R$ 10.000,00 em outro, sem que haja qualquer diferença substancial no conteúdo da demanda. Essa disparidade é incompatível com os princípios constitucionais da isonomia, da segurança jurídica e da moralidade administrativa, os quais devem reger a atividade jurisdicional.

Sob o ponto de vista filosófico, essa realidade entra em tensão com o que Ronald Dworkin denomina de "igual consideração e respeito": todo cidadão tem o direito de ser tratado pelo Estado — e, por consequência, pelo Judiciário — com seriedade moral e coerência institucional[5]. O Estado que fixa valores arbitrários ou irrisórios por um trabalho técnico relevante não apenas falha em reconhecer a dignidade do advogado, mas transmite ao jurisdicionado a mensagem de que sua defesa teve pouco ou nenhum valor intrínseco, o que mina a confiança pública na função judicial.

Portanto, o verdadeiro desafio posto à jurisprudência superior não é apenas o de reafirmar a legitimidade da equidade como critério, mas o de construir um padrão interpretativo confiável, sensível à realidade da atuação advocatícia e compromissado com os princípios da proporcionalidade, da coerência e da justiça substancial.

 

4. Arbitramento por Equidade: Caminhos para uma Interpretação Constitucionalmente Adequada

A cláusula de equidade, prevista no art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil de 2015, deve ser compreendida à luz do ordenamento jurídico como um instrumento de justiça distributiva, voltado à realização do direito em contextos de incerteza quanto ao valor econômico envolvido na causa. Seu uso, portanto, deve ser excepcional, justificado e compatível com os parâmetros constitucionais que regem a remuneração da advocacia.

Mais do que um artifício de conveniência procedimental, a equidade, quando invocada para arbitrar honorários sucumbenciais, deve operar como um critério orientado por princípios — e não como um cheque em branco nas mãos do julgador. Como tal, a sua aplicação precisa respeitar não apenas os critérios legais (art. 85, § 2º, CPC), mas sobretudo os princípios constitucionais que asseguram a dignidade da função advocatícia, a isonomia entre as partes e a integridade do processo justo.

É nesse ponto que se revela a necessidade de uma interpretação constitucionalmente adequada da equidade, conforme ensina Luís Roberto Barroso ao tratar do princípio da conformidade constitucional: toda norma infraconstitucional deve ser lida à luz da Constituição, buscando máxima efetividade aos direitos fundamentais nela consagrados[6].

No caso específico dos honorários advocatícios, essa leitura implica reconhecer que:

·        O art. 133 da Constituição Federal confere ao advogado a condição de indispensável à administração da justiça, assegurando-lhe prerrogativas compatíveis com a essencialidade da função que exerce;

·        O art. 85 do CPC/2015, ao tratar dos honorários sucumbenciais, adotou uma orientação remuneratória (e não meramente indenizatória ou simbólica), como forma de valorizar o trabalho técnico-jurídico e inibir práticas de fixação aleatória de valores;

·        O art. 22 do Estatuto da Advocacia (Lei n.º 8.906/94) reforça essa diretriz, ao prever que os honorários devem ser “fixados com moderação, atendidos os elementos previstos no CPC e no Código de Ética e Disciplina”, preservando a proporcionalidade e a dignidade da profissão.

Dessa forma, a utilização da equidade como parâmetro para fixação dos honorários não pode se traduzir em valor simbólico, padronizado ou desvinculado do esforço técnico exigido, sob pena de se configurar um verdadeiro aviltamento institucional da advocacia, prática que, lamentavelmente, tem se tornado comum, sobretudo nos julgamentos de incidentes como o IDPJ.

É necessário recordar que o princípio da proporcionalidade — em sua dimensão protetiva e proibitiva de excesso — deve guiar o arbitramento da verba honorária também quando se invoca a equidade. Remunerações irrisórias afrontam não apenas o direito subjetivo do profissional, mas enfraquecem a própria estrutura do processo justo, ao desestimular a atuação diligente em defesa do jurisdicionado.

Sob a ótica filosófica, tal como já defendido por Norberto Bobbio[7], um direito que não se efetiva na prática, por ausência de condições materiais mínimas, é apenas uma promessa retórica. Se o advogado é compelido a atuar por valores arbitrados sem relação com o esforço técnico demandado, cria-se um paradoxo ético-jurídico: o sistema exige excelência técnica, mas não oferece, em contrapartida, condições mínimas de reconhecimento dessa entrega.

Em termos institucionais, a continuidade dessa prática prejudica também a previsibilidade contratual. A ausência de critérios objetivos no uso da equidade contamina a confiança legítima que orienta a fixação de cláusulas honorárias entre advogados e seus clientes, sobretudo na advocacia contenciosa, onde a sucumbência é frequentemente usada como parte da composição econômica dos contratos.

Por fim, é importante destacar que a valorização adequada dos honorários — mesmo sob arbitramento equitativo — não é um privilégio da classe dos advogados, mas uma exigência sistêmica de justiça. A defesa técnica qualificada tem custo, exige preparo, responsabilidade, e deve ser remunerada em conformidade com sua natureza.

Portanto, o caminho mais compatível com a Constituição é aquele que reconhece a equidade como técnica de justiça, mas impõe ao julgador o dever de fundamentar, com base nos critérios legais e nos princípios constitucionais, a quantia arbitrada. Quando aplicada de forma consciente, fundamentada e proporcional, a equidade concretiza o direito; quando aplicada de forma automática e simbólica, o perverte.

 

5. Conclusões

Não é mais possível ignorar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) se tornou, na prática forense, muito mais do que um mero apêndice do processo executivo. A sua condução, especialmente quando impõe ao advogado a missão de defender a exclusão de um terceiro do polo passivo, exige um nível de complexidade técnica, responsabilidade estratégica e conhecimento jurídico que, em muitos casos, ultrapassa a própria discussão sobre o mérito da execução.

O que se discutiu neste artigo não é a legitimidade da equidade como critério de fixação de honorários — ela é válida, necessária e bem-vinda em muitos contextos. O que se questiona é o modo como ela vem sendo aplicada: de forma mecânica, padronizada, sem fundamento específico no caso concreto e, pior, frequentemente resultando em valores simbólicos que destoam completamente da atuação exigida.

Ao se fixar valores de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00 como regra — independentemente do grau de complexidade da demanda — a jurisprudência transforma o que deveria ser exceção em rotina, e o que deveria ser justiça corretiva em ferramenta de desvalorização. O problema, portanto, não está na letra da lei, mas na superficialidade com que vem sendo interpretada.

É nesse ponto que o Direito precisa reencontrar sua integridade. Como nos ensina Dworkin, o juiz não decide casos apenas aplicando regras: ele interpreta princípios, leva em consideração o valor das instituições e busca coerência no sistema. Decidir, portanto, não é apenas aplicar o art. 85, § 8º, do CPC — é aplicá-lo à luz da Constituição, dos deveres da magistratura, da dignidade da advocacia (art. 133 da CF), e da exigência de motivação consistente (art. 93, IX, CF).

Do ponto de vista prático, essa banalização da equidade tem efeitos corrosivos. Ela prejudica a confiança nos contratos advocatícios — que se tornam imprevisíveis. Ela enfraquece o papel do advogado como agente de transformação dentro do processo. E ela compromete a própria percepção de justiça, tanto para o profissional que atua quanto para o jurisdicionado que se vê amparado por uma defesa que, ao fim, é remunerada com indiferença institucional.

Mais do que um problema remuneratório, estamos diante de uma questão institucional e ética: o sistema judicial pode, sob o rótulo da equidade, manter uma estrutura de fixação de honorários que ignora o conteúdo da prestação jurisdicional e desestimula a excelência técnica?

A resposta, a meu ver, é negativa.

Se há algo que este debate revela é a necessidade urgente de uma mudança de postura interpretativa. O STJ deu um primeiro passo ao reconhecer a aplicação da equidade nos casos de IDPJ, mas é preciso ir além: construir critérios, promover uniformidade, exigir fundamentação qualificada. Não basta reconhecer a ferramenta — é preciso saber utilizá-la com justiça.

Valorizar a advocacia nesses incidentes não é proteger uma classe, é proteger o processo, a função jurisdicional e, em última instância, o próprio jurisdicionado, que tem o direito de ser defendido com seriedade — e ver essa defesa reconhecida com dignidade.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Livro V, cap. 10.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Comentários ao Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2023. v. 2.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. v. 3.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Coimbra: Almedina, 2016.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). EREsp 1.880.560/RN, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 24 abr. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 5 jun. 2024.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Súmula 7: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Disponível em: https://scon.stj.jus.br. Acesso em: abr. 2025.

 

 



[1] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 2016, p. 115–117.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, v. 3, p. 427.
Os autores abordam, com profundidade, a natureza jurídica dos honorários advocatícios no processo civil contemporâneo, tratando da função remuneratória e das consequências práticas da aplicação da equidade no arbitramento de honorários.

[3] 1.            STJ. EREsp 1.880.560/RN, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 24/04/2024, DJe 05/06/2024.

[4] Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça:


“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”

Enunciado jurisprudencial consolidado que limita a revisão do quantum dos honorários fixados por equidade nas instâncias ordinárias, salvo nos casos de manifesta violação à norma ou ausência de fundamentação.

 

[5] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 272–278.
Dworkin defende a ideia de que o Estado deve tratar todos os cidadãos com igual consideração e respeito, princípio que se reflete na exigência de decisões judiciais coerentes e fundamentadas, especialmente em temas sensíveis como a remuneração da advocacia.

 

[6] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 98–101.
O autor desenvolve a teoria da interpretação conforme a Constituição, defendendo que toda norma infraconstitucional deve ser lida à luz dos princípios constitucionais, com destaque para a máxima efetividade dos direitos fundamentais e a coerência sistêmica das decisões judiciais.

[7] BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Brasília: UNB, 2006, p. 89–93.
Bobbio destaca que um direito não concretizado é um direito apenas formal. A ausência de condições materiais mínimas para a atuação jurídica efetiva — como a remuneração justa do advogado — compromete a realização prática da justiça.

A INOVAÇÃO DAS INTIMAÇÕES JUDICIAIS POR WHATSAPP NO TJ-SP: BREVE ANÁLISE CRÍTICA E CONSTRUTIVA

O avanço tecnológico no âmbito do Poder Judiciário brasileiro tem se revelado inevitável diante das demandas contemporâneas por maior celeri...

Comente sobre o blog:

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *