Imagine a situação: você se torna o arrematante de um imóvel em leilão judicial. O preço é justo, a localização é ótima, e tudo parece se encaminhar bem. Entretanto, após a compra, você descobre que o imóvel possui dívidas de IPTU acumuladas de anos anteriores. E agora? Quem deve pagar esses valores, você ou o antigo proprietário?
Essa dúvida foi recentemente esclarecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em outubro de 2024, a Primeira Seção do STJ firmou uma tese sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.134) que traz maior segurança jurídica para arrematantes de imóveis em hasta pública.
Em síntese, o tribunal determinou que o arrematante não é responsável por dívidas tributárias anteriores à arrematação. Esse entendimento, embasado no artigo 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), afirma que o imóvel é adquirido livre desses débitos, que se sub-rogam no valor pago pela arrematação.
Vamos entender melhor o que significa esse entendimento e como ele impacta, na prática, quem participa de leilões judiciais.
1. A Questão da Responsabilidade Tributária na Arrematação Judicial
No direito tributário, a regra geral para as alienações de imóveis estabelece que o novo proprietário assume as dívidas vinculadas ao bem, como IPTU e taxas de serviços. Essa regra é definida no caput do artigo 130 do CTN e se aplica a compras convencionais de imóveis. Assim, quando alguém compra um imóvel em situação regular de mercado, herda também os débitos devidos ao Estado – o que se chama obrigação propter rem, ou seja, uma obrigação que acompanha o bem.
No entanto, o parágrafo único do artigo 130 do CTN prevê uma exceção para a arrematação em hasta pública. Nesse caso, o legislador determinou que os débitos anteriores ao leilão sub-rogam-se no preço de arrematação, ou seja, o valor pago pelo arrematante é que servirá para quitar essas dívidas. Na prática, significa que o arrematante receberá o imóvel “livre e desimpedido” de débitos anteriores.
2. Por Que Essa Exceção Existe? A Natureza Originária da Arrematação Judicial
Para entender o motivo dessa exceção, é importante compreender a diferença entre a aquisição originária e a derivada da propriedade. Quando um imóvel é adquirido por venda direta, existe uma continuidade entre o vendedor e o comprador, e todos os ônus e direitos vinculados ao imóvel passam para o novo proprietário. Esse é o caso da alienação derivada.
Mas, em uma arrematação judicial, essa lógica é diferente. Quando você arremata um imóvel em leilão, a propriedade é adquirida de forma originária, ou seja, sem qualquer vínculo com o antigo dono e sem que você assuma as obrigações passadas dele. É como se o imóvel começasse uma nova “vida” jurídica nas mãos do arrematante. Logo, você não é responsável pelas dívidas acumuladas do imóvel, pois sua aquisição se dá diretamente do Poder Judiciário, sem relação jurídica com o proprietário anterior.
Vamos a um exemplo prático:
Imagine que Maria possui um imóvel com uma dívida acumulada de IPTU. O imóvel vai a leilão judicial, e João arremata o bem. Após a compra, ele é informado de que o imóvel possui R$ 20.000,00 de débitos de IPTU. No entanto, conforme o artigo 130, parágrafo único, do CTN, João não precisará pagar essa dívida, pois o valor que ele pagou na arrematação deverá ser destinado ao pagamento desses débitos. Ele receberá o imóvel sem essas pendências tributárias, como se o imóvel fosse “novo” em seu histórico de obrigações fiscais.
3. A Prática dos Editais de Leilão e a Decisão do STJ
Apesar da clareza do CTN, era comum que os editais de leilão incluíssem cláusulas que responsabilizavam o arrematante pelos débitos tributários pendentes. Essa prática gerava insegurança e frustração para quem participava de leilões. Muitos arrematantes, ao tomar ciência dessas cláusulas, questionavam se realmente deveriam arcar com esses débitos.
Imagine que você se inscreva para um leilão e, ao ler o edital, vê que consta uma cláusula dizendo que o arrematante será responsável por todos os débitos de IPTU do imóvel. Diante disso, você pode se perguntar: “Se eu arrematar, realmente terei que pagar esses débitos?”
Com a decisão do STJ, fica claro que essas previsões nos editais são inválidas, pois contrariam o CTN, que tem o status de lei complementar, estando acima de qualquer norma administrativa ou editalícia. No julgamento do Tema 1.134, o STJ esclareceu que a responsabilidade tributária não pode ser alterada por uma previsão em edital, reforçando que o arrematante está protegido dessas dívidas.
4. Hierarquia das Normas: Por Que a Lei Complementar Prevalece
Um dos fundamentos centrais da decisão do STJ é a hierarquia das normas jurídicas. De acordo com a Constituição Federal, as normas gerais sobre tributação devem ser regulamentadas por lei complementar, como é o caso do Código Tributário Nacional. Assim, nenhum ato administrativo, como um edital de leilão, pode se sobrepor a essa regra. É o princípio da legalidade tributária em ação.
O artigo 123 do CTN também reforça esse entendimento ao prever que “convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.” Ou seja, ainda que o arrematante tenha conhecimento do débito e o aceite em contrato, essa responsabilidade não pode ser transferida a ele, pois a lei estabelece o oposto.
Para quem participa de leilões, isso significa mais segurança e confiança ao investir em imóveis judiciais, sabendo que não será surpreendido por débitos passados ao adquirir um bem.
5. Modulação dos Efeitos: Aplicação Apenas para os Editais Futuros
Sabendo que essa decisão altera uma prática comum e que muitos leilões já foram realizados sob os entendimentos anteriores, o STJ decidiu modular os efeitos de sua decisão. Em outras palavras, a tese fixada só se aplicará para leilões cujos editais sejam publicados após a ata do julgamento repetitivo do Tema 1.134. Para quem já possui um processo administrativo ou judicial em andamento sobre esse tema, a decisão terá efeito imediato, garantindo proteção a arrematantes que questionaram as dívidas antes dessa decisão.
Essa modulação foi uma forma do STJ preservar a segurança jurídica e evitar transtornos para aqueles que já participaram de leilões com a expectativa de que seriam responsáveis pelos débitos, de acordo com o entendimento anterior.
6. Impactos Práticos da Decisão para Arrematantes e o Mercado Imobiliário
A decisão do STJ não é apenas um detalhe técnico jurídico; ela tem implicações práticas importantes para quem compra imóveis em leilão e para o mercado como um todo.
Segurança para Arrematantes: O julgamento do Tema 1.134 traz clareza e confiança para quem participa de leilões judiciais, pois garante que o imóvel será recebido sem débitos de IPTU ou outras obrigações anteriores. Isso é um incentivo importante, pois muitas pessoas evitavam leilões justamente pelo receio de herdar dívidas inesperadas.
Respeito à Hierarquia Jurídica e Proteção ao Comprador: A decisão reafirma que normas administrativas não podem sobrepor-se às disposições legais e protege os compradores de imóveis em leilão, estabelecendo um padrão claro para futuros editais. Ao determinar a nulidade dessas cláusulas, o STJ dá um passo importante para garantir que a aquisição em hasta pública seja uma oportunidade justa e atraente.
Impacto no Mercado Imobiliário e Financeiro: Ao aumentar a segurança jurídica para arrematantes, a decisão do STJ também beneficia o mercado de imóveis leiloados. Sabendo que a arrematação se dará sem ônus tributários passados, investidores e compradores interessados podem participar mais ativamente desse tipo de aquisição, o que beneficia o próprio processo de recuperação de créditos judiciais e impulsiona o giro de imóveis no mercado.
7. Conclusão: Uma Nova Era para os Leilões Judiciais
O posicionamento do STJ no Tema 1.134 representa um avanço jurídico que harmoniza os interesses do Estado com a proteção dos arrematantes. Para aqueles que querem investir em imóveis de leilão, o cenário agora é mais claro: o arrematante não será responsável por débitos tributários anteriores, que serão sub-rogados no preço pago.
Em resumo, se você está pensando em participar de um leilão judicial, a decisão do STJ oferece uma garantia fundamental: a de que você não será surpreendido com cobranças de tributos antigos. Adquirir imóveis em hasta pública, portanto, torna-se uma opção mais segura e menos onerosa, permitindo que o arrematante invista sem receios e com respaldo jurídico.
Esse entendimento jurídico não só traz mais tranquilidade para o arrematante, como também contribui para a estabilidade e transparência dos leilões, essenciais para a saúde financeira e jurídica do mercado imobiliário.