Imagine a seguinte situação: uma
empresa de investimentos em criptomoedas causa danos financeiros em face de
diversos consumidores, no qual criam obstáculos para ressarci-los.
Diante deste caso hipotético, o
consumidor ingressa com ação judicial com o objetivo de ser ressarcidos aos
prejuízos materiais sobre o valor integralmente investido, bem como, aos danos
morais devidos caracterizar-se por pirâmide financeira e fraude.
Antes de trazermos o apontamento
necessário para este caso hipotético, é preciso claramente afirmar que nem
todas as empresas que atuam no setor de criptomoedas utilizam o engodo no
mercado, entretanto, cabe ao consumidor investigar a idoneidade da empresa
previamente.
É importante compreendermos que, a
desconsideração da personalidade jurídica é uma forma (teoria) que se busca
desprender quanto à responsabilidade da empresa e imputando aos seus sócios ou
administradores, se estes agirem com abuso, seja por desvio de finalidade ou
confusão patrimonial.
Cumpre observar também, que existem duas
teorias de desconsideração da personalidade jurídica, a Teoria Maior e a Teoria Menor.
Na Teoria Menor, apenas decorre da insolvência do
devedor para com os credores, indiferentemente de se analisar quanto aos
fatores que ensejaram a sociedade a deixar de se obrigar perante terceiros.
Esta teoria é
comumente empregada em casos de insolvência ou falência da pessoa jurídica,
danos ambientais e nas relações de consumo. Basta o prejuízo para caracterizar
como Teoria Menor.
A base
jurídica da Teoria Menor possui previsão no
art. 28, § 5° do Código de Defesa do Consumidor e o art. 4° da Lei n.
9.605/1998.
A Teoria Maior se caracteriza quando se provado o
desvio de finalidade da pessoa jurídica ou confusão patrimonial. Podemos citar
o art. 50 do Código de Civil de 2002, que prescreve:
Art. 50. Em caso de abuso de personalidade
jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão
patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério
Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações seja estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Nesta Teoria
acima descrita, o abuso de personalidade jurídica se perfaz quando houver o
desvio de finalidade ou confusão patrimonial, sendo suficiente um dos dois elementos
para a sua aplicação, ou seja, não são requisitos cumulativos.
Sobre os efeitos da aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica
De fato, seja
qual for a Teoria aplicada com sua respectiva legislação, seguramente, não
afeta a personalidade da pessoa jurídica, mas sim, os efeitos patrimoniais da
personalidade, especialmente o princípio da autonomia patrimonial que protege o
patrimônio das pessoas naturais que integram ou administram a pessoa jurídica,
afastando-a de forma temporária em decorrência da fraude.
A partir desta perspectiva surge uma
indagação, afinal: Todos os sócios e administradores são atingidos pela
desconsideração da personalidade jurídica?
A interpretação
do art. 50, caput, do Código Civil de 2002, que somente os bens particulares de
administradores e sócios que abusaram da personalidade jurídica, cabendo quem
alega comprova-los.
Conforme o
Enunciado 07, da Jornada de Direito Civil: Só
se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática
de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam
incorrido[1].
Desta forma,
apresentados os apontamentos iniciais sobre a desconsideração da personalidade
jurídica, podemos adentrar ao presente tema proposto com base nas decisões dos
Tribunais.
É
preciso compreender que, a atuação irregular pelas empresas que poderá ensejar
numa aparente fraude e a consequência será a desconsideração da personalidade
jurídica com único objetivo de evitar que os consumidores que adquiriram as
Criptmoedas (Bitcoins) não fiquem sem reaver sobre os valores pagos, justamente para preservar o patromônio
daquele que foi lesado e apontando a responsabilização do sócio ou administrador
que promoveu a referida fraude.
Podemos
citar, por exemplo, na hipótese do consumidor não conseguir mais o acesso da
plataforma ou sistema online que constam as informações da cripmoeda adquirida
e para fim de preservar o patrimônio do consumidor, coube por bem desconsiderar
a personalidade jurídica e bloquear os bens dos sócios e administradores da
empresa, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná em julgado recente[2].
Perceba que,
neste caso não se aplica a teoria maior, mas sim a teoria menor, levando-se em
consideração a inexistência de patrimônio suficiente para garantir o cumprimento das obrigações da pessoa
jurídica, sendo irrelevante a caracterização do abuso por parte dos sócios e
administradores.
A
fundamentação jurídica para aplicação da teoria menor a consequente
desconsideração da personalidade jurídica possui previsão nos artigos 28,
parágrafo 5º, do Código de Defesa do Consumidor, e 4º da Lei dos Crimes
Ambientais (Lei 9.605/1998).
Além
disso, existem inúmeras empresas que prestam serviços de intermediação na
compra e venda de criptomoeda, mediante remuneração, a destinatário final.
Logo, a consequência será aplicar a integralidade do Código de Defesa do
Consumidor.
Noutro
ponto prático é a pessoa lesada registrar um boletim de ocorrência ou mover uma
ação de natureza criminal se, de fato houver indícios de pirâmide financeira da
empresa de investimentos ou intermediação, pois, pode trazer um peso ainda maior
na decisão do juiz cível em relação ao ressarcimento dos valores e a desconsideração
da personalidade jurídica.
Interessante
leitura de um julgado recente do Tribunal de Justiça de São Paulo, retratando
bem a realidade de uma pessoa que não conseguiu resgatar os valores de bitcoins
retidos pela empresa que teve que promover uma ação judicial para ser
ressarcido e durante ao processo o juiz desconsiderou a personalidade jurídica
como forma de trazer maior efetividade na referida devolução em favor do
consumidor. Vejamos:
RECURSO –
APELAÇÃO CÍVEL – GESTÃO DE NEGÓCIOS – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM
DEVOLUÇÃO DE VALORES E DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. Justiça
gratuita pleiteada pelos requeridos apelantes. Demandados que comprovam a
insuficiência de recursos, enquanto que o recolhimento de custas possui o
condão de prejudicar sua própria subsistência. Concessão. Possibilidade.
Acolhimento do pleito da conceder ao requerente os benefícios da gratuidade
processual RECURSO – APELAÇÃO CÍVEL – GESTÃO DE NEGÓCIOS – AÇÃO DE RESCISÃO
CONTRATUAL CUMULADA COM DEVOLUÇÃO DE VALORES E DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE
JURÍDICA – MATERIA PRELIMINAR. Cerceamento de defesa. Inocorrência. Não se
constatada o cerceamento de defesa alegado. Há nos autos prova suficiente para
deslinde da causa, o que dispensa a produção de qualquer outra. Matéria
preliminar afastada. RECURSO – APELAÇÃO CÍVEL – GESTÃO DE NEGÓCIOS – AÇÃO DE
RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM DEVOLUÇÃO DE VALORES E DESCONSIDERAÇÃO DE
PERSONALIDADE JURÍDICA - MERITO. Investimentos em bitcoins. Incidência do
Código de Defesa do Consumidor ao presente caso. Desconsideração da personalidade jurídica acertada, eis que existente
obstáculo ao ressarcimento do prejuízo suportado pelo consumidor. Rescisão
do pacto firmado entre as partes e devolução do valor pertencente ao autor.
Possibilidade. Descumprimento contratual
por parte das requeridas devidamente demonstrado. Ação julgada parcialmente
procedente. Sentença mantida. Recurso de apelação dos requeridos não
provido, majorada a verba sucumbencial com base no artigo 85, parágrafo 11, do
Código de Processo Civil.
(TJ-SP - AC:
10087191920208260562 SP 1008719-19.2020.8.26.0562, Relator: Marcondes D'Angelo,
Data de Julgamento: 13/09/2021, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de
Publicação: 13/09/2021)
Em
síntese, o instrumento da desconsideração da personalidade jurídica nos casos
relacionados a crimes de pirâmide financeira e de empresas de criptomoedas são
suficientes para preservação do patrimônio de pessoas lesadas.
A finalidade é
evitar que os sócios e administradores resgatem todos os valores recebidos
indevidamente e transfiram para pessoas físicas e não deixando que tais pessoas
fiquem “a ver navios”, ou, na melhor das expressões, “ganhou, mas não levou!”.
E, fatalmente, se assim não fosse,
empobreceria o sistema de efetividade da Justiça em desfavor dos vulneráveis da
relação consumerista, bem como, possibilitando que utilizem “laranjas” ou
“testas de ferro”, nos contratos sociais, caracterizados estes meros administradores
formais encobrindo os verdadeiros sócios e administradores de
responsabilização.
[2]
TJ-PR - AI: 00703101520208160000 Curitiba 0070310-15.2020.8.16.0000 (Acórdão),
Relator: Denise Kruger Pereira, Data de Julgamento: 14/02/2022, 18ª Câmara
Cível, Data de Publicação: 15/02/2022