09/05/2025

DEZ ANOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: O QUE APRENDEMOS COM AS 11 TESES FUNDAMENTAIS DO STJ



Caro leitor, cara leitora,

 

Há exatos dez anos, o novo Código de Processo Civil entrava em vigor, carregando consigo promessas ambiciosas: simplificação, cooperação, efetividade, primazia do julgamento de mérito. O tempo passou, a prática moldou a teoria, e hoje temos um panorama muito mais claro de onde acertamos, onde ainda tropeçamos e como evoluímos.

Foi nesse contexto que o Superior Tribunal de Justiça, verdadeiro guardião da interpretação da legislação infraconstitucional, publicou a Jurisprudência em Teses nº 255, selecionando onze teses que ilustram o amadurecimento do CPC/2015.

Mas o que exatamente essas teses nos dizem? Por que importam na vida do advogado, do juiz, do jurisdicionado? Convido você a uma leitura que vai além da simples enumeração: vamos refletir, juntos, sobre o que cada uma dessas decisões representa.

1. ACESSO À JUSTIÇA SEM FRONTEIRAS: A GRATUIDADE PARA ESTRANGEIROS NÃO RESIDENTES

Será que alguém que nem mora no Brasil pode bater às portas do Judiciário brasileiro pedindo gratuidade da justiça?

A resposta é sim, e com toda razão jurídica e constitucional. Foi isso que afirmou o Superior Tribunal de Justiça ao interpretar o artigo 98 do Código de Processo Civil, reforçando o entendimento de que a gratuidade da justiça não está condicionada à nacionalidade brasileira nem à residência no território nacional.

Mas por que isso é importante na prática?

Vamos imaginar um cenário comum: uma cidadã portuguesa, que esteve em viagem ao Brasil, sofre um acidente de trânsito em São Paulo, causado por um motorista local. De volta ao seu país, sem recursos financeiros e ainda em tratamento médico, ela decide ajuizar uma ação indenizatória aqui no Brasil, buscando reparação pelos danos sofridos.

Antes do CPC/2015, haveria dúvida — e resistência — quanto à possibilidade de concessão da gratuidade àquela estrangeira, especialmente se não residisse nem tivesse vínculo estável com o país. Alguns juízes poderiam exigir prova de reciprocidade internacional, ou alegar que o benefício seria reservado a brasileiros e residentes.

Hoje, esse entendimento não se sustenta mais.

Com a redação ampla e objetiva do artigo 98, o novo código passou a tratar a gratuidade como um direito processual subjetivo, vinculado única e exclusivamente à condição de insuficiência de recursos da parte, e não a critérios territoriais ou nacionais. Isso significa que qualquer pessoa, brasileira ou não, residente ou não, pode pleitear o benefício se demonstrar que não tem condições de arcar com as custas, sem prejuízo próprio ou de sua família.

E o que disse o STJ?

Em decisões paradigmáticas como a proferida no Pet 9815/DF, a Corte deixou claro: a Justiça brasileira não pode se fechar a quem procura proteção jurisdicional, desde que o pedido esteja fundado em direito e necessidade legítima. Ao fazer isso, o Tribunal aplica diretamente os princípios da isonomia, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana — todos eles com status constitucional.

Isso nos convida a refletir: por que a nacionalidade deveria ser um obstáculo ao acesso à Justiça? Não seria incoerente negar esse direito justamente a quem, por estar fora do país, tem menos acesso a meios de defesa?

Mais do que uma discussão técnica, essa tese revela uma visão humanista e democrática do processo civil, rompendo com uma tradição excludente, muitas vezes enrijecida por formalismos.

 

Em síntese:

·        A condição financeira da parte é o único critério relevante para a concessão da justiça gratuita;

·        O domicílio estrangeiro não impede o pedido, desde que o processo tramite perante o Judiciário brasileiro;

·        A decisão do STJ reafirma que a jurisdição é um serviço público de natureza universal;

·        Advogados que atuam em causas internacionais ou com clientes estrangeiros devem estar atentos a esse direito, para não reproduzir antigos preconceitos normativos.

 

2. TRANSIÇÃO LEGISLATIVA E O AGRAVO EM AUTOS APARTADOS: SEGURANÇA OU SURPRESA?

Quando o novo Código de Processo Civil entrou em vigor em 2016, muitos processos ainda tramitavam sob o regime do antigo CPC de 1973. E isso gerou um desafio prático e teórico que ainda hoje ressoa: como lidar com atos processuais praticados na vigência do código revogado, mas cujos efeitos se prolongam sob o novo código?

Essa dúvida ganhou forma concreta em uma situação muito comum: a impugnação à gratuidade da justiça apresentada em autos apartados, ainda na vigência do CPC/1973, mas decidida já sob o CPC/2015.

E surge a pergunta: é cabível agravo de instrumento contra essa decisão? Afinal, o código antigo não previa essa hipótese de recurso, e o novo prevê (art. 1.015, V). Estamos diante de uma transição normativa.

O Superior Tribunal de Justiça, enfrentando o tema com a cautela que merece, afirmou que sim, é cabível agravo de instrumento mesmo nesses casos. Ou seja, a nova regra recursal aplica-se às decisões proferidas após a entrada em vigor do CPC/2015, independentemente de o incidente ter sido instaurado anteriormente.

Mas por que essa decisão é tão relevante?

Porque ela traz segurança jurídica em meio ao caos das transições legislativas. Em vez de adotar uma postura rígida — que poderia vedar o direito ao recurso simplesmente pelo “pecado” de o incidente ter nascido sob o CPC/73 —, o STJ preferiu olhar para a natureza da decisão e o momento da sua prolação.

Vamos exemplificar com uma situação realista:

Imagine que uma empresa requereu gratuidade da justiça em um processo iniciado em 2015. O pedido foi impugnado pelo réu e, como manda o figurino da época, a impugnação foi autuada em autos apartados. Por inércia ou sobrecarga, o juiz só analisou o pedido em 2017, já na vigência do novo CPC, deferindo a gratuidade.

O que poderia fazer a parte contrária? Sob o CPC/73, essa decisão não era agravável. Mas sob o CPC/15, é expressamente agravável (art. 1.015, V). Haveria direito ao recurso?

Sim, afirmou o STJ, pois a regra aplicável é a vigente no momento da decisão, e não no momento em que o incidente foi instaurado. É o princípio da atividade regida pelo direito vigente à época da prática do ato, e não do início do processo.

Esse posicionamento evita injustiças como a perda do direito de recorrer por um critério meramente temporal e formal. Afinal, o que está em jogo aqui não é só um tecnicismo recursal, mas o acesso efetivo à impugnação de decisões que impactam direitos fundamentais, como o custeio do processo.

A lição que fica é clara: a transição entre códigos exige hermenêutica construtiva, não punitiva. A função do Judiciário deve ser suavizar os impactos da mudança, e não surpreender as partes com decisões intransigentes.

Em síntese:

  • Agravo de instrumento é cabível contra decisão sobre gratuidade, mesmo em incidente instaurado sob o CPC/73, se a decisão foi proferida já sob o CPC/15;
  • O artigo 1.015, V, deve ser interpretado com base no momento da decisão, e não do início do incidente;
  • A tese promove uniformidade e segurança jurídica, especialmente relevante para quem atua em processos de longa duração;
  • Evita prejuízos processuais fundados em datas e não em direitos.

 

E você? Já se viu em uma situação em que o código mudou no meio do caminho? Já perdeu ou quase perdeu a chance de recorrer por uma dúvida como essa?

Essas teses do STJ são lembretes de que o Direito Processual não é uma armadilha cronológica, mas um instrumento vivo, que deve funcionar como ponte — e não como muro — entre normas e Justiça.

 

3. O ENSINO JURÍDICO NA PRÁTICA: PRAZO EM DOBRO PARA TODOS?

Você já atuou com um Núcleo de Prática Jurídica? Ou já precisou peticionar em nome de um cliente atendido por uma faculdade de Direito? Se sim, talvez tenha se deparado com a seguinte dúvida: os escritórios de prática jurídica de instituições privadas de ensino também têm direito ao prazo em dobro para manifestações processuais, como já se reconhecia às universidades públicas?

A resposta é: sim, têm direito ao mesmo benefício. E isso não é mero detalhe — é afirmação de igualdade institucional e valorização do papel social do ensino jurídico.

O artigo 186, §3º, do Código de Processo Civil de 2015 estabelece que as prerrogativas da Defensoria Pública se estendem aos escritórios-modelo das instituições de ensino superior. Porém, durante muito tempo, essa prerrogativa foi aplicada apenas às universidades públicas, sob o argumento (questionável) de que estariam mais próximas da função institucional da Defensoria.

Foi o Superior Tribunal de Justiça que, com a maturidade que a Constituição exige, corrigiu esse equívoco: não importa se a faculdade é pública ou privada; o que importa é o papel que desempenha — a defesa gratuita de pessoas hipossuficientes, por meio de um núcleo estruturado e reconhecido.

Vamos imaginar um caso realista:

Uma senhora idosa, com problemas de saúde e renda mínima, busca auxílio jurídico gratuito. Ela é atendida por um escritório de prática jurídica de uma universidade privada, com alunos supervisionados por professores. O núcleo ingressa com ação revisional de contrato bancário. O juiz, no curso do processo, nega o prazo em dobro à faculdade, alegando que não se trata de Defensoria Pública nem de instituição pública.

O que fazer? A tese fixada pelo STJ orienta com clareza: o prazo em dobro é cabível, sim, sempre que o escritório de prática jurídica estiver exercendo a função de assistência gratuita, independentemente de sua natureza pública ou privada.

E por que isso é relevante?

Porque o Direito não pode admitir duas categorias de cidadão hipossuficiente: um que tem direito ao contraditório ampliado, quando assistido por universidade pública; e outro que tem acesso mais limitado à Justiça, porque buscou atendimento em uma instituição privada.

Mais do que isso: a Constituição assegura liberdade de ensino, igualdade entre instituições e acesso à Justiça para todos. Excluir as privadas seria discriminação institucional injustificável.

Essa decisão fortalece também o papel pedagógico desses núcleos. Ao garantir o prazo em dobro, permite que os alunos aprendam com tempo e cuidado, sob supervisão docente — afinal, a formação de um bom profissional do Direito também exige tempo e zelo técnico, e o processo precisa acolher essa realidade.

 

Em síntese:

  • O prazo em dobro do art. 186, §3º do CPC aplica-se tanto às instituições públicas quanto às privadas, desde que atuem por meio de escritórios-modelo ou núcleos de prática jurídica;
  • A prerrogativa é funcional e pedagógica, vinculada à defesa gratuita de necessitados e ao processo de formação jurídica;
  • O STJ assegura isonomia entre instituições de ensino e protege o direito fundamental de acesso à Justiça;
  • Essa tese é especialmente útil em petições e recursos que alegam cerceamento de defesa por negativa do benefício.

Agora, com esse entendimento consolidado pelo STJ, há base firme para reivindicar o direito. E, mais do que isso, reafirmar que formar estudantes de Direito e atender pessoas carentes não é exclusividade do ensino público — é missão compartilhada.

 

4. Sentença estrangeira sem trânsito em julgado? Sim, desde que eficaz

Imagine o seguinte cenário: uma empresa brasileira é condenada por um tribunal da Alemanha ao pagamento de indenização a um fornecedor local. A sentença, ainda que passível de recurso naquele país, já produz efeitos concretos — por exemplo, foi utilizada para protestar a dívida ou executar garantias bancárias. O fornecedor decide homologar essa decisão no Brasil, com o objetivo de penhorar ativos da empresa aqui.

Mas então surge a pergunta que muitos advogados e juízes já fizeram: é necessário que essa sentença esteja transitada em julgado lá fora para que seja homologada aqui?

A resposta, segundo a interpretação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, é não. O que importa não é o trânsito em julgado, mas a eficácia da sentença no ordenamento jurídico de origem. É isso que estabelece o artigo 963, inciso III, do Código de Processo Civil de 2015.

E por que isso faz sentido?

Porque exigir o trânsito em julgado seria um entrave desnecessário à cooperação jurídica internacional, e colocaria o Brasil em descompasso com os princípios que regem o reconhecimento de decisões estrangeiras na maioria dos sistemas processuais modernos.

Vamos pensar de forma prática.

Muitas decisões estrangeiras têm eficácia imediata mesmo antes de seu trânsito em julgado. Isso é especialmente comum em sistemas que adotam o duplo grau de jurisdição sem efeito suspensivo automático — ou seja, o recurso não impede a produção de efeitos da sentença. Nesses casos, a decisão já pode ser executada no país de origem. Logo, se ela já é eficaz lá, por que exigir no Brasil uma condição que nem mesmo o país de origem exige para que ela surta efeitos?

Mais ainda: a exigência de trânsito em julgado pode criar um incentivo indevido à litigiosidade, pois a parte contrária no país de origem pode recorrer apenas para impedir a homologação no Brasil, mesmo sabendo que perderá. Seria um uso abusivo do sistema jurídico.

O STJ, ao flexibilizar esse requisito, adota uma postura de racionalidade jurídica e alinhamento ao princípio da boa-fé processual, reconhecendo que o que realmente interessa é a eficácia da sentença e sua compatibilidade com a ordem pública brasileira — e não o esgotamento formal de todas as vias recursais no exterior.

Aliás, essa compreensão está plenamente em sintonia com a Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial de Sentenças Estrangeiras e com os princípios que regem o Direito Internacional Privado, segundo os quais o reconhecimento de sentenças estrangeiras deve priorizar a funcionalidade, não o formalismo.

 

Em síntese:

  • Não é necessário o trânsito em julgado da sentença estrangeira para que seja homologada no Brasil, desde que ela já seja eficaz no país de origem;
  • A exigência indevida de trânsito em julgado contraria os princípios da cooperação internacional e da efetividade processual;
  • O art. 963, III, do CPC/2015 permite uma interpretação mais moderna, voltada à utilidade e à função prática da sentença estrangeira;
  • Essa tese é especialmente importante em execuções internacionais, arbitragens, e disputas comerciais transnacionais.

 

Com essa jurisprudência firme do STJ, há fundamentos claros para sustentar o pedido. E mais do que isso: reafirma-se o compromisso do Judiciário brasileiro com um processo civil aberto ao diálogo internacional, atento às realidades econômicas e jurídicas do mundo globalizado.

5. Repercussão geral não suspende automaticamente os processos: sobrestamento exige decisão expressa

Você já teve um processo sobrestado por causa da repercussão geral? Ou pior: já peticionou pedindo suspensão de um feito sob o argumento de que o STF reconheceu a matéria como relevante? Se sim, é provável que tenha se deparado com o seguinte dilema: afinal, o simples reconhecimento da repercussão geral suspende automaticamente os processos sobre o tema?

De forma direta: não suspende automaticamente. O Superior Tribunal de Justiça foi categórico ao afirmar que o sobrestamento depende de decisão expressa do relator no STF. Essa é a interpretação que decorre do artigo 1.035, §5º, do Código de Processo Civil de 2015.

E aqui cabe uma pausa para refletir: por que essa tese importa tanto na prática?

Porque, em tempos de precedentes vinculantes, muitos operadores do Direito caem na tentação de entender a repercussão geral como um “botão de pausa” universal. Algo como: “Reconheceu a repercussão? Suspende tudo!”. Mas essa lógica simplista ignora dois elementos fundamentais:

  1. O sistema de precedentes exige gestão judicial ativa e não automatismos que engessam o processo;
  2. O reconhecimento da repercussão geral apenas sinaliza que o tema é relevante, não que a sua tramitação seja incompatível com o julgamento futuro do STF.

Vamos a um exemplo concreto:

Imagine que você advoga em favor de um servidor público e está discutindo o direito à incorporação de uma vantagem pessoal aos proventos de aposentadoria. Um recurso extraordinário sobe ao STF tratando da mesma tese jurídica, e a Corte reconhece a existência de repercussão geral.

Naturalmente, você pensa: “Vou pedir o sobrestamento do meu processo, pois o Supremo vai decidir”. Só que o relator no STF ainda não determinou a suspensão dos demais feitos. Resultado? O juiz de primeira instância pode (e deve) continuar julgando.

Essa orientação é coerente com a lógica de eficiência e racionalidade processual. Afinal, há casos em que a controvérsia está próxima da resolução, e suspender a marcha processual significaria atrasar a entrega da tutela jurisdicional, sem ganho efetivo.

Além disso, a decisão do STJ evita abuso do pedido de suspensão como estratégia protelatória. A repercussão geral não deve ser usada como instrumento de defesa em processos em que o interesse real é ganhar tempo e não resolver o mérito.

Outro ponto importante: o STF, ao reconhecer repercussão geral, não julga de imediato. O julgamento pode levar anos. Se todos os processos fossem suspensos automaticamente, o sistema travaria. O que o artigo 1.035, §5º fez foi atribuir ao relator do STF a função de moderador, definindo se e quando a suspensão deve ocorrer.

Em síntese:

  • O reconhecimento da repercussão geral não acarreta a suspensão automática dos processos relacionados ao tema;
  • O sobrestamento depende de decisão expressa do relator do recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal;
  • Essa interpretação preserva a eficiência processual e coíbe manobras procrastinatórias;
  • A tese tem impacto direto em processos tributários, administrativos, previdenciários e de massa, onde a repercussão geral é frequentemente invocada.

Pois bem, com essa tese do STJ, você tem um argumento sólido para defender a continuidade da marcha processual, mesmo diante da repercussão geral. É a autoridade do relator — e não o tema em si — que determina a suspensão.

 

6. Embargos de declaração interrompem prazos? Sim, mas apenas para interposição de recursonão para defesa

Essa é uma daquelas armadilhas do dia a dia forense: o advogado vê a parte contrária interpondo embargos de declaração, e pensa — legitimamente, mas de forma equivocada — que o prazo para todos os atos processuais está suspenso. E então relaxa, posterga, espera.

Só que o prazo corre. E, quando menos se espera, a oportunidade de apresentar uma defesa — como embargos à execução — se esvai.

Aqui entra a orientação firme do Superior Tribunal de Justiça: os embargos de declaração interrompem o prazo apenas para a interposição de recurso, conforme dispõe o artigo 1.026 do Código de Processo Civil de 2015.

Mas atenção: isso não se estende às defesas processuais, como, por exemplo, os embargos à execução ou a impugnação ao cumprimento de sentença.

Vamos a um exemplo para ilustrar.

Imagine que um devedor é intimado da decisão que defere o cumprimento de sentença. Ele tem prazo legal para impugnar. A parte exequente, no entanto, opõe embargos de declaração contra essa decisão, tentando esclarecer um ponto omisso.

O advogado do executado, ao tomar ciência dos embargos, acredita que o prazo dele também está interrompido — afinal, “embargos interrompem o prazo, certo?”

Errado, neste caso.

A interrupção vale somente para a parte que teria que recorrer. O executado não está recorrendo da decisão, ele está se defendendo da execução. O prazo para a defesa dele continua a correr normalmente.

Se ele perder esse prazo por confiar em uma interpretação extensiva do artigo 1.026, perderá o direito de se manifestar — e poderá ser considerado revel ou ver seu patrimônio penhorado sem contraditório efetivo.

Essa tese firmada pelo STJ é uma advertência à advocacia e à magistratura: o processo civil exige rigor técnico no manejo dos prazos, e qualquer ampliação de efeitos processuais precisa estar fundamentada na lei — não em inferências ou analogias.

Há, ainda, um pano de fundo importante: a diferenciação entre defesa e recurso. Embora ambos sejam manifestações do contraditório, ocupam lugares distintos na estrutura procedimental. O recurso visa revisar uma decisão judicial. Já a defesa, especialmente na fase de execução, é um direito reativo à pretensão do exequente, com prazos autônomos.

 

Em síntese:

  • Embargos de declaração interrompem apenas o prazo para interposição de recurso (art. 1.026 do CPC);
  • Não interrompem prazos para apresentação de defesas autônomas, como embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença;
  • A aplicação indevida dessa interrupção pode levar à preclusão temporal e graves prejuízos patrimoniais;
  • A tese é essencial em execuções fiscais, ações de cobrança e cumprimento de sentença, onde os prazos são exíguos e de natureza peremptória.

 

E você, colega, já teve que esclarecer esse ponto para um cliente ou mesmo para um colega de profissão? Já viu embargos serem indeferidos por intempestividade por conta de um cálculo de prazo equivocado?

Essa decisão do STJ nos lembra que o processo é, sim, instrumento de justiça, mas que a justiça também depende do manejo técnico e preciso dos seus ritos. Não há espaço para “achismos” em contagem de prazos.

 

7. Reclamação para fazer valer precedente repetitivo? Não é por esse caminho

Você já se viu diante de uma decisão que claramente contraria uma tese fixada em recurso especial repetitivo, e teve vontade de protocolar uma reclamação diretamente no STJ?

Se sim, saiba que esse impulso, embora compreensível, pode levar a um erro processual grave, se a reclamação for usada como atalho para corrigir uma má aplicação do precedente. Isso porque o STJ tem reiterado que não cabe reclamação com o único fundamento de inobservância de entendimento firmado em recurso repetitivo, nos termos do artigo 988, §5º, inciso II, do Código de Processo Civil de 2015.

Aqui vale uma pausa: por que isso importa tanto?

Porque vivemos na era dos precedentes obrigatórios. Desde o CPC/2015, o sistema jurídico brasileiro deu um passo relevante na tentativa de racionalizar o volume de litígios e padronizar a jurisprudência, criando um modelo híbrido entre o civil law e o common law.

Nesse modelo, as teses firmadas em recursos especiais repetitivos — assim como em repercussão geral no STF — têm eficácia vinculante para os demais órgãos do Judiciário. Porém, essa vinculação não transforma a reclamação em instrumento universal de correção.

Vamos imaginar um caso concreto.

Suponha que um juiz de primeiro grau julgue improcedente uma ação baseada em contrato bancário, ignorando tese firmada em recurso repetitivo do STJ que reconhece a abusividade de determinada cláusula. O advogado, indignado, decide não recorrer pela via ordinária e opta por propor reclamação diretamente no STJ, argumentando que houve violação ao precedente repetitivo.

Essa reclamação será inadmitida.

Por quê? Porque a função da reclamação, nesse caso, não é substituir o recurso cabível (apelação ou recurso especial). A correta aplicação de tese repetitiva deve ser arguida nos meios processuais ordinários, como fundamento recursal, e não por via autônoma.

A única hipótese legal de cabimento da reclamação, nesse contexto, seria se o acórdão impugnado tivesse afastado a aplicação de uma tese vinculante firmada pelo próprio STJ em um caso no qual ele já tenha decidido a matéria como instância última, e mesmo assim a decisão inferior tenha descumprido frontalmente — e ainda assim, de forma excepcional.

O que o STJ tem feito com essa tese é resgatar a finalidade original da reclamação constitucional: preservar a autoridade das decisões de instância superior e garantir a competência do tribunal. Ela não é um “recurso coringa”, e seu uso indiscriminado ameaça a coerência do sistema recursal.

Além disso, usar a reclamação indevidamente pode provocar não só a sua rejeição, mas também sanções por má-fé ou protelação, e responsabilização por atuação temerária, especialmente em causas de massa, como nos juizados especiais ou em ações consumeristas.

 

Em síntese:

  • Não cabe reclamação ao STJ apenas por inobservância de tese firmada em recurso repetitivo (art. 988, §5º, II, do CPC);
  • A reclamação não substitui o recurso cabível — a via adequada para discutir a má aplicação de precedente é o recurso próprio, como apelação ou recurso especial;
  • O uso indevido da reclamação pode ser interpretado como manobra protelatória ou desvio de finalidade;
  • A tese fortalece a sistemática dos precedentes obrigatórios, sem permitir sua banalização ou uso fora das hipóteses legais.

 

E você, já cogitou usar a reclamação como solução rápida para o descumprimento de um precedente? Já se deparou com decisões que contrariavam repetitivos e não sabia se havia fundamento técnico para ir direto ao STJ?

A resposta está dada: o caminho é o recurso — e não a reclamação. A construção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente exige que cada ferramenta seja usada em sua medida certa.

8. IRDR e a reclamação: quando a vinculação não se impõe ao STJ por essa via

Sabemos que o IRDR – o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – foi uma das grandes inovações do CPC de 2015. A proposta era clara: permitir que os tribunais locais uniformizassem entendimentos sobre questões de direito repetitivas, garantindo isonomia de tratamento e segurança jurídica nas decisões de massa.

Mas eis a dúvida que vem se impondo desde então: quando um tribunal local firma uma tese em IRDR e essa tese é confirmada ou alinhada pelo STJ em recurso especial, é cabível reclamação quando um juízo ou tribunal inferior ignora esse entendimento?

De maneira enfática, o STJ disse não. Não cabe reclamação ao STJ por inobservância de tese fixada em recurso especial interposto no âmbito de um IRDR. E esse entendimento se ancora na interpretação dos artigos 987, caput, e 988, inciso IV, do CPC/2015.

Vamos entender isso melhor com um exemplo prático.

Imagine que o Tribunal de Justiça de determinado estado, diante de uma enxurrada de ações de servidores públicos questionando o desconto previdenciário em verbas indenizatórias, decide instaurar um IRDR. Após o procedimento regular, firma-se a tese de que o desconto é indevido. Contra essa tese, é interposto recurso especial, que é julgado pelo STJ, confirmando o entendimento do tribunal local.

Agora, suponha que, meses depois, um juiz de primeiro grau decide de forma contrária ao entendimento firmado, aplicando uma interpretação própria e ignorando tanto o IRDR quanto a decisão do STJ no recurso especial.

Pode a parte prejudicada propor uma reclamação diretamente no STJ, alegando violação ao precedente?

Não. E é aqui que entra o núcleo da tese do STJ.

O entendimento da Corte é que, ainda que a decisão do STJ tenha confirmado a tese do IRDR, isso não transforma automaticamente aquela decisão em precedente vinculante para fins de reclamação. Isso porque a competência para gerir o cumprimento das teses firmadas em IRDR continua sendo dos próprios tribunais locais.

A função do STJ, nesse contexto, é apenas a de controle de legalidade da decisão no âmbito do recurso cabível — e não de substituição do tribunal originário na fiscalização da aplicação da tese. Permitir que o STJ controlasse diretamente o cumprimento das teses firmadas em IRDR significaria distorcer as competências definidas na Constituição e no próprio CPC.

Ou seja, a reclamação não é o caminho processual adequado para garantir que a tese de um IRDR, mesmo confirmada pelo STJ, seja respeitada. O instrumento correto permanece sendo o recurso próprio e, em última análise, a atuação da Corregedoria do tribunal local, se necessário.

Esse entendimento preserva o modelo federativo do Judiciário, assegura a autonomia dos tribunais estaduais e regionais, e evita que a reclamação se transforme em uma forma de centralizar, indevidamente, todo o controle de precedentes nas mãos do STJ.

 

Em síntese:

  • Não cabe reclamação ao STJ quando a tese firmada em IRDR, mesmo confirmada em recurso especial, é ignorada por instância inferior;
  • A competência para gerir o cumprimento do IRDR é do próprio tribunal que o instaurou;
  • A decisão do STJ em recurso especial não gera automaticamente efeito vinculante nacional para fins de reclamação;
  • O sistema de precedentes depende de respeito às competências institucionais e à verticalização recursal adequada, sem encurtamentos indevidos.

Você já se deparou com um IRDR que não foi respeitado por um juízo de primeiro grau? Já se sentiu tentado a ir direto ao STJ com uma reclamação?

Essa tese nos ensina que, por mais frustrante que possa parecer, o caminho mais curto nem sempre é o juridicamente correto. A boa técnica processual exige que atuemos com coerência, respeitando a arquitetura institucional que sustenta o sistema de precedentes.

9. Quando o agravo é erro grosseiro: recurso especial inadmitido com base em repetitivo exige técnica e cautela

Todo advogado que milita em segunda instância já se deparou com isso: interpõe um recurso especial, mas o tribunal local nega seguimento com base na existência de precedente repetitivo do STJ — tese já firmada e aplicada ao caso concreto.

O impulso natural, muitas vezes, é o seguinte: interpor o agravo do artigo 1.042 do CPC, para tentar levar o recurso ao Superior Tribunal de Justiça. Afinal, o agravo seria o “caminho normal” para contestar a negativa de seguimento.

Mas é justamente aqui que mora o perigo. O STJ tem reiterado que, nessas hipóteses, interpor agravo contra a inadmissão do recurso especial é erro grosseiro. E como todo erro grosseiro no processo, ele não pode ser corrigido nem gera qualquer efeito útil.

Vamos entender o porquê.

A negativa de seguimento fundamentada na incidência de tese repetitiva já julgada não trata de um juízo discricionário ou controvertido do tribunal de origem. Trata-se de uma decisão vinculada, decorrente do artigo 1.040 do CPC, que prevê a aplicação obrigatória da tese firmada pelo STJ em recurso repetitivo.

Assim, ao negar seguimento ao recurso especial sob esse fundamento, o tribunal local está apenas cumprindo seu dever de observar o precedente obrigatório, e não exercendo uma função decisória autônoma que possa ser revisada por agravo.

E aqui está o ponto central da tese: não cabe agravo do artigo 1.042 contra esse tipo de decisão, porque ela se baseia na aplicação de tese repetitiva já julgada, e não em um indeferimento técnico de admissibilidade. O que caberia, se fosse o caso, seria demonstrar que a situação dos autos é distinta da tese repetitiva aplicada — ou seja, que há distinção (distinguishing), o que deveria ser feito no momento da interposição do próprio recurso especial.

Vamos ilustrar com um exemplo:

Um banco interpõe recurso especial contra acórdão que reconheceu a abusividade da capitalização mensal de juros em contrato de financiamento. O tribunal local nega seguimento ao recurso com base na tese firmada pelo STJ no Tema 952, segundo a qual, na ausência de expressa pactuação, a capitalização mensal é indevida.

O advogado do banco, inconformado, interpõe agravo do artigo 1.042 do CPC, alegando genericamente que o tema ainda é controvertido.

Resultado: o STJ inadmite o agravo de plano, qualificando a interposição como erro grosseiro, pois a tese já está consolidada e a decisão do tribunal local foi meramente executória da orientação superior.

Mais do que indeferir, o STJ tem classificado essas interposições como inadmissíveis até mesmo para fins de reaproveitamento como agravo interno, encerrando o debate de forma sumária.

 

Em síntese:

  • Não cabe agravo do art. 1.042 do CPC contra decisão que inadmite recurso especial com base em tese repetitiva já firmada pelo STJ;
  • Interpor esse agravo é considerado erro grosseiro, sem possibilidade de reaproveitamento ou transformação em agravo interno;
  • A parte deve observar, desde a origem, se há possibilidade real de distinguishing com a tese aplicada. Se não houver, a decisão não é recorrível pela via do agravo;
  • A tese busca evitar o uso automático e improdutivo do agravo como manobra protelatória ou por simples inconformismo.

Essa orientação é de extrema relevância para a prática contenciosa, especialmente em litígios de massa, ações bancárias, planos econômicos, demandas previdenciárias e questões consumeristas, onde os temas repetitivos estão por toda parte.

E você? Já se viu diante da dúvida: "interponho o agravo ou não?" Agora sabe que, diante de uma negativa com base em tese repetitiva, o caminho do agravo pode ser não apenas inútil, mas prejudicial.

10. ROL DO ARTIGO 1.015 DO CPC: TAXATIVIDADE MITIGADA COMO INSTRUMENTO DE JUSTIÇA

O artigo 1.015 do CPC enumera as hipóteses em que é cabível agravo de instrumento contra decisões interlocutórias — ou seja, decisões que não põem fim ao processo, mas que podem afetar substancialmente seu curso ou o direito das partes.

Logo após a entrada em vigor do novo Código, instalou-se uma dúvida crucial: seria esse rol realmente taxativo? Ou poderia admitir exceções em nome da efetividade processual?

A resposta veio com força no Tema 988 do STJ, que firmou a seguinte tese: o rol do artigo 1.015 é taxativo, mas com interpretação mitigada. Isso significa que, em situações excepcionais de urgência ou risco de inutilidade da futura decisão, é admissível o agravo de instrumento mesmo fora das hipóteses expressamente previstas no artigo.

Vamos entender o que isso significa na prática.

Imagine que, em uma ação de família, o juiz decide suspender o convívio de um dos pais com o filho, mas essa decisão não está entre as hipóteses do artigo 1.015. Se formos fiéis a uma leitura estritamente taxativa, a parte prejudicada teria que aguardar o julgamento da apelação ao final da ação, o que pode demorar anos. O problema é que, nesse meio tempo, o dano já estará consumado: o vínculo afetivo pode ter sido rompido, a alienação agravada, a situação deteriorada de forma irreversível.

É aí que entra a taxatividade mitigada. O STJ compreendeu que o sistema processual não pode se fechar a ponto de impedir o acesso imediato à instância superior quando a decisão for, por sua natureza, potencialmente irreversível.

Outro exemplo claro vem da esfera empresarial:

Um juiz determina que uma das partes deposite valores altíssimos em conta judicial, como condição para seguir com a demanda. Essa decisão não se encontra expressamente no artigo 1.015, mas seu impacto patrimonial e processual é imediato e potencialmente danoso. Se o jurisdicionado só puder discutir isso no recurso de apelação, a utilidade da revisão judicial pode ser nula.

Nestes casos, o STJ entendeu que o agravo de instrumento é cabível, desde que demonstrada a urgência ou a inutilidade futura da apelação. A interpretação mitigada, portanto, não é um cheque em branco, mas uma válvula de escape para hipóteses excepcionais que, se não revistas de pronto, podem comprometer o direito material e o acesso à tutela jurisdicional efetiva.

E isso tem tudo a ver com o espírito do CPC/2015, que colocou como centro do processo a efetividade, a razoável duração e a primazia do julgamento de mérito. Não se trata de relativizar a técnica, mas de impedir que a forma anule o conteúdo do direito.

 

Em síntese:

  • O artigo 1.015 do CPC traz um rol taxativo, mas que deve ser interpretado de forma mitigada, conforme decidiu o STJ no Tema 988;
  • É cabível agravo de instrumento fora das hipóteses do rol, desde que se comprove risco de inutilidade da apelação ou prejuízo irreparável;
  • A tese garante flexibilidade e justiça no acesso ao segundo grau, especialmente em temas de família, tutela provisória, decisões patrimoniais graves, entre outros;
  • A mitigação não dispensa fundamentação rigorosa: é preciso demonstrar de forma clara a urgência e o impacto da decisão impugnada.

 

Você já teve que lidar com decisões interlocutórias extremamente prejudiciais, mas que não se encaixavam no artigo 1.015? Já ficou na dúvida se deveria ou não agravar?

Pois bem, a resposta do STJ nos autoriza — em casos excepcionais e bem fundamentados — a recorrer sim. A técnica não pode ser barreira para o justo. O processo, como já disse a doutrina mais sensível, não é um fim em si mesmo — é o caminho para que o direito encontre a realidade.

 

11. QUANDO O JUIZ PODE COMPELIR A EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS: VERDADE REAL, CONTRADITÓRIO E MULTA

Você já enfrentou a frustração de atuar em um processo em que a parte adversa detém um documento essencial, mas simplesmente não o apresenta? Ou, pior ainda, nega sua existência, mesmo quando há fortes indícios de que o possui?

Esse tipo de situação, infelizmente, é mais comum do que se imagina, especialmente em litígios bancários, securitários, empresariais e de consumo, nos quais o acesso à documentação relevante está nas mãos da parte com maior poder econômico.

Foi pensando nisso que o legislador processual inseriu no artigo 400, parágrafo único, do CPC/2015 um importante instrumento de justiça: a possibilidade de o juiz determinar a exibição de documento ou coisa, sob pena de multa, após contraditório prévio e frustrada tentativa de obtenção voluntária.

E o que decidiu o STJ?

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema 1000, consolidou que é plenamente válida a imposição de multa como medida coercitiva para forçar a exibição de documentos, desde que atendidos dois requisitos fundamentais:

  1. Verossimilhança da relação jurídica entre as partes que justifique a posse do documento por quem se recusa a apresentá-lo;
  2. Precedência do contraditório e da tentativa de exibição voluntária — ou seja, o juiz não pode determinar a multa de forma automática ou sem oportunizar a manifestação da parte.

Esse entendimento fortalece o que chamamos de modelo cooperativo de processo civil, em que não há espaço para estratégias de ocultação, má-fé ou litigância obstrutiva. O CPC/2015 exige que as partes colaborem para a descoberta da verdade, e o juiz deixa de ser um mero espectador da prova para assumir papel ativo na sua produção.

Exemplo prático:

Imagine uma ação revisional de contrato bancário. O consumidor alega cobrança de encargos indevidos, mas o banco não junta os extratos originais nem as planilhas detalhadas, alegando genericamente que “a parte autora já os possui” ou que “não há obrigatoriedade legal de apresentar”.

Após requerimento expresso da parte autora e indeferimento por omissão da ré, o juiz, com base no art. 400, parágrafo único, pode determinar a exibição dos documentos sob pena de multa diária, fixando valor razoável e compatível com o porte da instituição.

Essa decisão, conforme a tese do STJ, é legítima e necessária — afinal, negar a prova documental essencial significa comprometer o contraditório, frustrar o direito à prova e desnaturar o processo justo.

 

Em síntese:

·        O artigo 400, parágrafo único, do CPC/2015 permite a imposição de multa coercitiva para compelir a exibição de documento ou coisa essencial ao processo;

·        A medida depende de:


a) Verossimilhança da relação jurídica que indique a posse do documento pela parte adversa;

b) Frustração da exibição voluntária após contraditório;

·        A tese reforça o papel do juiz como gestor da prova e promove o princípio da cooperação processual;

·        É especialmente útil em ações revisionais, indenizatórias, securitárias, bancárias e consumeristas.

 

Você já se viu diante de uma situação em que a parte contrária se esquivava da prova documental, dificultando ou mesmo impedindo o andamento justo da causa? Já teve indeferido um pedido de exibição de documento por falta de clareza no pedido?

Com a tese firmada pelo STJ, há respaldo jurídico para que o juiz atue ativamente em defesa do contraditório pleno e da descoberta da verdade real — sempre com equilíbrio, mas com firmeza contra condutas processuais abusivas.

 

Com isso, concluímos o ciclo completo das 11 teses da Jurisprudência em Teses n. 255 do STJ, em comemoração aos 10 anos do CPC/2015. Este panorama mostra como o novo Código não apenas alterou regras — ele transformou a mentalidade processual, exigindo uma advocacia mais técnica, consciente e colaborativa.

 

 

 

 

24/04/2025

Apelação e Competência Recursal: A Usurpação do Juízo a quo e a Consolidação do Tema 1267/STJ



1. Introdução

              

O julgamento do Tema 1267 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.072.867/MA, REsp 2.072.868/MA e REsp 2.072.870/MA) resgata com rigor a necessidade de reafirmar os fundamentos estruturantes do sistema recursal instituído pelo Código de Processo Civil de 2015. Muito além de uma controvérsia pontual sobre técnica processual, a discussão revela uma tensão de fundo entre o respeito à competência funcional dos órgãos jurisdicionais e práticas forenses ainda marcadas por resquícios do regime anterior.

No centro do debate está a delimitação da competência para o juízo de admissibilidade da apelação — um tema que, embora emoldurado por normas processuais, toca diretamente garantias fundamentais como o contraditório, o devido processo legal e o acesso efetivo às instâncias superiores. O novo CPC, ao concentrar essa atribuição no tribunal ad quem (art. 1.010, § 3º), promoveu uma ruptura consciente com a lógica do Código de 1973, deslocando o poder de filtragem recursal do juízo de primeiro grau para o órgão competente para julgar o mérito do recurso.

O que se viu, contudo, foi uma resistência prática à plena aplicação dessa norma. Muitos juízos de origem, em descompasso com a literalidade do dispositivo e com o modelo processual vigente, continuaram a exercer controle prévio da admissibilidade recursal, obstando o seguimento da apelação com base em pressupostos que, por determinação legal, deveriam ser analisados pelo tribunal. Essa prática — que parecia apenas um detalhe de gestão procedimental — encerra uma séria deformação do desenho constitucional do processo, pois usurpa competência, compromete a isonomia procedimental e fragiliza a integridade da jurisdição.

Nesse cenário, a definição firmada pela Corte Especial — no sentido de que o juízo de primeiro grau não detém competência para inadmitir a apelação, e que eventual indeferimento configura usurpação de competência, ensejando reclamação nos termos do art. 988, I, do CPC — não apenas corrige uma distorção prática, mas reafirma a centralidade dos tribunais como instâncias de controle técnico-jurídico dos recursos e guardiões do sistema de precedentes.

Importa destacar, ademais, que essa questão não se restringe ao plano técnico dos operadores do direito. O modo como os recursos são processados impacta diretamente o jurisdicionado, que tem o direito não apenas a recorrer, mas a ser julgado por quem tem competência para tanto. O indeferimento prematuro da apelação pelo juízo de origem constitui violação indireta ao acesso à justiça, à ampla defesa e ao devido processo legal, todos de estatura constitucional.

É nesse contexto que o presente artigo se propõe a examinar — à luz do recente precedente qualificado — os limites legais e constitucionais da atuação judicial na admissibilidade recursal, os instrumentos processuais disponíveis para correção de vícios dessa natureza e os reflexos sistêmicos que o tema projeta sobre a coerência e integridade do processo civil brasileiro.

A análise será feita com base na legislação, na jurisprudência consolidada e sob o olhar crítico da doutrina e da filosofia do direito, buscando compreender, mais do que a norma em si, os valores que ela visa proteger e o modelo de justiça que deve sustentar.

               2. O Novo Modelo Recursal e a Competência Exclusiva do Tribunal

A promulgação do Código de Processo Civil de 2015 representou uma guinada no tratamento normativo conferido ao sistema recursal, especialmente quanto à redistribuição funcional das competências para a análise dos pressupostos recursais.

No tocante à apelação, a alteração foi não apenas estrutural, mas paradigmática: o novo modelo afasta expressamente o juízo de admissibilidade da esfera de competência do juiz de primeiro grau, atribuindo-o exclusivamente ao tribunal ad quem, conforme redação literal do art. 1.010, § 3º, do CPC:

“Cumprido o disposto nos §§ 1º e 2º, o juiz encaminhará os autos ao tribunal, independentemente de juízo de admissibilidade.”

 

A regra em questão não deixa margem a interpretações extensivas nem espaço para filtragens prévias pelo juízo de origem. A opção legislativa foi clara e deliberada: a função de verificar os pressupostos de admissibilidade da apelação — como tempestividade, regularidade formal, preparo e legitimidade — é atribuída ao órgão jurisdicional competente para apreciar o mérito recursal. Trata-se de uma delimitação funcional que visa assegurar racionalidade procedimental, coerência institucional e respeito à autoridade do tribunal.

Essa modificação rompe com a tradição do CPC/1973, em que o juiz a quo realizava o juízo de admissibilidade, o que frequentemente gerava decisões contraditórias, recursos paralelos e insegurança jurídica. O novo arranjo normativo busca, justamente, eliminar esse ponto de atrito e estabelecer uma linha contínua entre a interposição do recurso e sua apreciação meritória, promovendo maior fluidez processual e integridade na jurisdição recursal.

Mais do que um detalhe técnico, o dispositivo carrega consigo uma carga axiológica relevante, pois visa evitar a indevida concentração de poder decisório nas mãos do juiz sentenciante, impedindo que o mesmo magistrado que decidiu a causa exerça controle sobre a possibilidade de reexame da própria decisão.

A separação entre a jurisdição de origem e a jurisdição recursal, nesse contexto, não é apenas uma exigência funcional — é uma salvaguarda de imparcialidade e um mecanismo de distribuição equilibrada do poder dentro do sistema judicial.

Além disso, a competência exclusiva do tribunal para o juízo de admissibilidade das apelações está em consonância com a lógica do sistema de precedentes vinculantes introduzido pelo próprio CPC/2015.

Ao centralizar nos tribunais a análise dos requisitos recursais, o legislador pretendeu garantir maior controle institucional sobre o acesso aos órgãos colegiados, permitindo que esses tribunais exerçam com plenitude seu papel na formação e consolidação de jurisprudência estável, íntegra e coerente (art. 926, CPC).

Dessa forma, quando o juiz de primeiro grau, contrariando o art. 1.010, § 3º, se arvora a inadmitir a apelação com base em seus próprios critérios sobre regularidade formal ou ausência de interesse recursal, usurpa competência funcional expressamente atribuída ao tribunal, ferindo de forma direta a legalidade, a coerência do sistema e a própria lógica recursal desenhada pelo novo Código.

É nesse exato ponto que o STJ, no julgamento do Tema 1267, intervém para reafirmar a divisão de competências como valor jurídico e como garantia institucional do processo. O que está em jogo, portanto, não é apenas a interpretação de um parágrafo legal, mas a efetivação de uma concepção moderna de jurisdição, baseada na colaboração, na deferência entre instâncias e na estruturação racional do poder jurisdicional.

3. A Atuação Indevida do Juízo a quo e a Medida Cabível: Reclamação

 

A controvérsia apreciada no Tema 1267 do STJ trouxe à tona uma prática que, embora reiterada em alguns segmentos da jurisdição nacional, não encontra respaldo normativo e revela inequívoca afronta à lógica do sistema processual em vigor: trata-se da inadmissão de apelações pelo juízo de primeiro grau, com fundamento em alegadas irregularidades formais ou ausência de preenchimento dos pressupostos recursais.

Em resposta a essa prática, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os Recursos Especiais repetitivos de n.º 2.072.867/MA, 2.072.868/MA e 2.072.870/MA, firmou posição inequívoca: tal conduta configura usurpação de competência do tribunal ad quem. Isso porque, conforme delineado no art. 1.010, § 3º, do CPC/2015, é de competência exclusiva do órgão recursal exercer o juízo de admissibilidade da apelação. A atuação do juiz a quo, ao impedir o prosseguimento do recurso, invade competência alheia e compromete a integridade da função jurisdicional.

Para esses casos, a medida processual adequada — e agora consolidada pelo STJ como o único instrumento eficaz e juridicamente correto — é a reclamação constitucional, com fundamento no art. 988, I, do CPC, que permite o uso do instituto quando houver "usurpação de competência de tribunal".

O acórdão paradigmático também acolheu expressamente o entendimento doutrinário que já vinha sendo amplamente difundido por estudiosos do processo civil, em especial no âmbito do Fórum Permanente de Processualistas Civis, por meio do Enunciado 207, que dispõe:

“Cabe reclamação, por usurpação da competência do tribunal de justiça ou tribunal regional federal, contra a decisão de juiz de 1º grau que inadmitir recurso de apelação.”

 

A consagração jurisprudencial desse enunciado reforça o compromisso do STJ com a uniformização interpretativa e o respeito ao modelo procedimental estabelecido pelo legislador. A decisão confere, portanto, estabilidade à jurisprudência, orienta a atuação da magistratura de primeiro grau e pacifica a via recursal cabível.

Trata-se, aqui, de uma reafirmação do princípio da legalidade estrita na condução do processo jurisdicional, e, ao mesmo tempo, do resguardo da competência funcional dos órgãos superiores, que não pode ser usurpada sob pretexto de controle prévio de requisitos recursais.

Do ponto de vista sistêmico, essa orientação cumpre relevante função de correção interna: fornece ao jurisdicionado um instrumento célere e adequado para destrancar apelações indevidamente obstadas, sem que seja necessário recorrer a expedientes extraordinários ou pouco apropriados, como mandado de segurança, correição parcial ou até agravos fora do rol taxativo.

Sob o viés constitucional, a orientação firmada também concretiza a garantia do acesso efetivo à jurisdição plena (art. 5º, XXXV, CF) e protege o jurisdicionado contra atos que, embora travestidos de legalidade formal, subvertem a repartição de competências estabelecida por lei federal.

Assim, a reclamação deixa de ser apenas um instrumento residual para se consolidar como mecanismo central de preservação do modelo recursal concebido pelo CPC/2015, reafirmando a necessidade de rigor técnico e deferência institucional entre os graus de jurisdição.

4. A Inadequação do Agravo de Instrumento na Fase de Conhecimento

              

Uma das contribuições mais relevantes do julgamento do Tema 1267/STJ reside na explicitação, com clareza e segurança, da inadequação do agravo de instrumento como meio de impugnação da decisão do juiz de primeiro grau que inadmite a apelação. A Corte Especial do STJ, com base em interpretação sistemática e finalística do art. 1.015 do CPC, afastou definitivamente essa possibilidade.

De acordo com a redação do referido dispositivo, o agravo de instrumento é cabível apenas nas hipóteses expressamente previstas em seus incisos e, por força da jurisprudência dominante, em situações excepcionais de urgência que inviabilizem a eficácia de um eventual provimento futuro. Essa mitigação, introduzida pela jurisprudência a partir do Tema 988/STJ, não autoriza interpretação extensiva ou analógica para abarcar decisões que, na prática, configuram usurpação de competência.

O STJ deixou claro que a inadmissão da apelação pelo juízo de origem não é mera decisão interlocutória: trata-se de uma atuação inválida, que extrapola os limites legais da jurisdição do primeiro grau, pois versa sobre matéria de competência exclusiva do tribunal. Em outras palavras, não se está diante de decisão que possa ser corrigida por agravo, mas de um vício de ordem funcional, cuja natureza implica em nulidade absoluta do ato processual por incompetência.

Dessa forma, a tentativa de manejar agravo de instrumento, correição parcial ou mandado de segurança contra tal decisão não se coaduna com a sistemática recursal vigente. Tais medidas, além de inadequadas à luz da jurisprudência atual, poderiam gerar sobreposição de competências, multiplicação de recursos paralelos e insegurança quanto à tramitação do processo.

O julgamento do Tema 1267, portanto, opera como um marco de racionalização e uniformização procedimental, orientando a comunidade jurídica quanto ao uso correto dos instrumentos processuais. A solução adequada — e agora indiscutivelmente firmada — é a reclamação com base no art. 988, I, do CPC, cujo escopo é justamente proteger a competência do tribunal em face de usurpações e garantir o correto funcionamento do sistema jurisdicional.

A inadequação do agravo, nesse contexto, reforça a própria lógica do modelo recursal desenhado pelo CPC/2015, que é baseado em especialização funcional, respeito à hierarquia jurisdicional e contenção da litigiosidade recursal excessiva. Não se trata de dificultar o acesso à instância superior, mas de garantir que esse acesso se dê pelas vias apropriadas, conforme a estrutura previamente delineada pelo legislador.

Admitir o agravo de instrumento nessas hipóteses seria, em última análise, legitimar um desvio da norma legal sob o pretexto da urgência, invertendo a racionalidade do sistema. Pior: implicaria validar a própria conduta ilegal do juízo de origem, que, ao inadmitir a apelação, já atua fora de sua competência.

Portanto, o acórdão paradigmático não apenas reafirma a exclusão dessa hipótese do rol do art. 1.015, como também previne a erosão institucional das normas de competência, fortalecendo a integridade do sistema recursal e a previsibilidade na sua aplicação.

5. Modulação de Efeitos e o Princípio da Fungibilidade Recursal

 

Consciente da instabilidade jurisprudencial que precedeu a consolidação do entendimento firmado no Tema 1267, o Superior Tribunal de Justiça adotou uma postura prudente e equitativa ao optar pela modulação dos efeitos da decisão, permitindo que a nova orientação não retroagisse para prejudicar recursos manejados de boa-fé sob bases antes consideradas plausíveis.

Dessa forma, a Corte reconheceu que, até o momento da publicação do acórdão, havia dúvida interpretativa razoável quanto ao meio processual adequado para impugnar a decisão do juízo de primeiro grau que inadmitisse a apelação. Por isso, admitiu, em caráter excepcional, que recursos como agravo de instrumento, correição parcial ou mesmo mandado de segurança fossem recebidos como reclamação, desde que ainda pendentes de julgamento definitivo e sem trânsito em julgado.

Essa solução dialoga diretamente com o princípio da fungibilidade recursal, positivado no art. 1.009, § 1º, do CPC, segundo o qual o erro na interposição de recurso não prejudica sua admissibilidade, desde que haja dúvida objetiva sobre o cabimento e ausência de má-fé da parte.

 

“Art. 1.009. § 1º: Serão considerados interpostos os recursos para os fins legais, mesmo quando a parte houver se equivocado quanto ao nome ou à classificação do recurso cabível, desde que preenchidos os requisitos de sua interposição.”

 

Essa diretriz não apenas preserva a boa-fé do jurisdicionado — que atuou com base em orientação doutrinária e jurisprudencial não pacificada à época — como também evita o sacrifício desnecessário do direito à ampla defesa e ao duplo grau de jurisdição por motivos meramente formais.

Do ponto de vista constitucional, a modulação prestigia a segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF) e reforça a função integradora do STJ, evitando o tratamento desigual entre jurisdicionados em função do momento temporal de interposição de seus recursos. Trata-se de um gesto de responsabilidade institucional, que reconhece o caráter evolutivo da jurisprudência e garante que a transição interpretativa não produza efeitos abruptos, incoerentes ou punitivos.

Além disso, a adoção da fungibilidade nesses casos específicos reafirma a importância de um processo civil substancialmente justo, no qual a forma existe para proteger o conteúdo e não para impedir sua realização. Como já advertia Liebman, as formas processuais devem servir à função de garantir a decisão de mérito — e não serem convertidas em armadilhas formais que legitimam a injustiça.

Assim, a modulação de efeitos promovida pelo STJ não enfraquece a tese firmada — ao contrário, fortalece sua aplicação racional e responsável, assegurando que o novo entendimento se projete para o futuro com coerência, sem desprezar a boa-fé processual e o princípio da proteção da confiança legítima.

 

6. Considerações Finais: O Papel do STJ e a Efetividade do Sistema Recursal

 

               O julgamento do Tema 1267 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça representa não apenas a consolidação de um entendimento técnico-processual: ele expressa um compromisso institucional com a integridade do sistema de justiça e com os fundamentos filosóficos que sustentam o devido processo legal.

Ao afirmar que o juízo de admissibilidade da apelação é competência exclusiva do tribunal ad quem, o STJ reafirma um valor essencial ao processo civil contemporâneo: a repartição racional de competências como garantia de imparcialidade e como instrumento de contenção do poder estatal. Trata-se de um exemplo claro do que Ronald Dworkin denominava de governar por princípios: aplicar o direito não apenas por meio de regras, mas respeitando valores como coerência, igualdade e respeito institucional.

A decisão também concretiza uma concepção material de justiça. Como bem alertava Gustav Radbruch, a legalidade que afronta de forma evidente a justiça cessa de ser direito. Ora, permitir que o juiz que decide a causa exerça controle sobre o próprio reexame de sua decisão seria romper com o ideal de imparcialidade que a própria estrutura processual busca preservar. Quando o STJ corrige essa deformação, resgata a racionalidade interna do sistema, evitando que a forma se sobreponha ao conteúdo e que a autoridade funcional seja exercida fora de seus limites legítimos.

Nesse sentido, também ressoa a advertência clássica de Norberto Bobbio: um direito que não se efetiva é um direito apenas formal. A norma do art. 1.010, § 3º, do CPC, só adquire valor real se aplicada com rigor — e se for protegida contra interpretações desviantes que, sob o pretexto de celeridade ou conveniência prática, comprometem garantias como o contraditório, o duplo grau de jurisdição e a imparcialidade decisória.

Do ponto de vista ético-jurídico, a decisão revaloriza o papel do processo como ambiente institucional de justiça distributiva, conforme ensina Aristóteles em sua Ética a Nicômaco: a equidade é a justiça adaptada ao caso concreto, e a função jurisdicional deve ser exercida com equilíbrio, respeito aos limites e consciência da posição de autoridade.

Ao devolver ao tribunal o controle sobre os requisitos da apelação, o STJ não apenas interpreta a lei, mas restabelece o justo lugar de cada órgão jurisdicional no processo democrático da jurisdição.

Além disso, a modulação de efeitos revela maturidade institucional. Ao reconhecer a dúvida objetiva anteriormente existente quanto ao recurso cabível, o Tribunal atua em consonância com o princípio da confiança legítima, dimensão valorativa diretamente ligada à segurança jurídica e à boa-fé objetiva. Em vez de sancionar formalismos ou punir a parte que agiu de maneira coerente com a jurisprudência do momento, o STJ acolhe a dimensão humana do processo, reconhecendo que o direito, como ensinava Miguel Reale, se dá sempre na confluência entre fato, valor e norma.

Portanto, o Tema 1267 não apenas corrige uma anomalia técnica. Ele afirma um modelo de processo civil comprometido com a justiça institucional, com a função ética da jurisdição e com a defesa da estrutura democrática do sistema de recursos. Sua importância não reside apenas na tese fixada, mas na postura interpretativa que adota: técnica, prudente, fundamentada e profundamente fiel aos princípios que estruturam o Estado de Direito.

Assim, como já ensinava Calamandrei, o processo é o caminho pelo qual o direito se realiza. Com essa decisão, o STJ reafirma que esse caminho não pode ser desviado por atalhos autorreferentes ou por práticas incompatíveis com o ordenamento — deve, sim, ser trilhado com rigor, justiça e respeito aos fundamentos filosófico-jurídicos que legitimam a própria existência do processo.

 

Referências

 

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores).

 

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

 

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

 

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução: Edgard de Moura Bittencourt. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Comentários ao Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2023. v. 2.

 

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo Civil. Tradução: José Frederico Marques. São Paulo: Saraiva, 1973.

 

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria geral do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. v. 3.

 

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2016.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). EREsp 2.072.867/MA, EREsp 2.072.868/MA, EREsp 2.072.870/MA. Rel. Min. Nancy Andrighi. Corte Especial. Julgado em 24 abr. 2024. DJe 05 jun. 2024.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Tema Repetitivo n. 1267. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/temas-repetitivos . Acesso em: abr. 2025.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Tema Repetitivo n. 988. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/temas-repetitivos. Acesso em: abr. 2025.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Súmula n. 7. A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/ . Acesso em: abr. 2025.

23/04/2025

Honorários Advocatícios em Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica: A Tensão entre a Equidade e a Valorização da Advocacia



Por Luiz Fernando Pereira – Advogado e Consultor Jurídico. Especialista em Direito Processual Civil, com sólida formação nacional e internacional. Atua em contencioso estratégico, consultoria jurídica, Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito Público, com ênfase na defesa de servidores públicos, inclusive em processos administrativos disciplinares. Advogado junto ao CREMESP. Atua como advogado dativo perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e a Justiça Federal. Foi advogado dativo do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e das Comissões de Direito Processual Civil, Direito Constitucional e Administrativo, Direito Médico e da Saúde, e Acidente do Trabalho da OAB/SP. Mantém o blog jurídico drluizfernandopereira.blogspot.com e canal próprio no YouTube, onde compartilha conteúdo técnico sobre temas contemporâneos do Direito.


Artigo inédito a ser submetido à revista especializada em Direito Processual.

 

1. Introdução

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), expressamente positivado no Código de Processo Civil de 2015 (arts. 133 a 137), consolidou-se como uma das mais relevantes inovações processuais da última década. Trata-se de um instrumento que visa conferir efetividade à execução, ao permitir que o credor responsabilize diretamente pessoas naturais ou jurídicas ligadas ao devedor principal, mediante demonstração de desvio de finalidade ou confusão patrimonial — elementos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica.

Na prática forense contemporânea, o IDPJ tornou-se uma ferramenta recorrente, especialmente em execuções de natureza cível, empresarial e fiscal, funcionando como mecanismo de superação dos limites formais entre a pessoa jurídica e seus membros, em situações em que o patrimônio da empresa não é suficiente para satisfazer a dívida executada.

O crescente protagonismo do incidente, contudo, trouxe consigo questões jurídicas ainda não suficientemente equacionadas pela jurisprudência e pela doutrina, especialmente no que tange à remuneração do trabalho advocatício quando a atuação se dá exclusivamente na defesa do terceiro incluído no polo passivo do feito executivo.

O vácuo normativo se revela mais agudo quando se verifica que, na maioria das vezes, o profissional é contratado apenas para atuar nesse incidente, sem qualquer vínculo com a execução principal ou com eventual embargos. Em tais situações, não há proveito econômico direto mensurável nos moldes clássicos da sucumbência, o que tem levado os tribunais a aplicarem, de forma quase automática, o art. 85, § 8º do CPC, que permite o arbitramento dos honorários por equidade nas hipóteses em que o valor da causa é irrisório, inestimável ou inexistente.

Essa solução, embora normativamente válida, tem gerado profunda inquietação na comunidade jurídica, pois vem sendo interpretada de forma redutora, resultando na fixação de honorários em patamares simbólicos, muitas vezes desconectados da real complexidade do trabalho realizado.

O que se vê, na prática, é uma tendência à padronização de valores baixos — frequentemente arbitrados entre R$ 1.000,00 e R$ 5.000,00 — independentemente da carga probatória exigida, da responsabilidade envolvida ou da relevância econômica da execução principal.

Nesse contexto, surge a pergunta que motiva este artigo: é juridicamente aceitável — e eticamente defensável — que a atuação autônoma e tecnicamente qualificada em um IDPJ seja sistematicamente remunerada de forma simbólica, sob a justificativa de ausência de proveito econômico direto?

Tal questionamento não é meramente retórico, mas está no cerne da discussão sobre a dignidade da advocacia, a função jurisdicional e os critérios de justiça na fixação de honorários advocatícios.

Como se demonstrará ao longo deste estudo, o problema está menos no uso da equidade como critério — que é legítimo e necessário em diversos contextos — e mais na forma com que ela vem sendo aplicada, desprovida de critérios objetivos, de base argumentativa densa e, principalmente, de sensibilidade à realidade da atuação profissional. Ao tratar o IDPJ como um apêndice da execução e ao desconsiderar a natureza contenciosa e estratégica do incidente, o Judiciário, muitas vezes, incorre naquilo que Gustav Radbruch[1] chamaria de uma “injustiça legal” — uma aplicação formal da norma que contraria os valores materiais da justiça e da proporcionalidade.

Neste artigo, busca-se então revisitar o tema à luz do direito processual civil, da jurisprudência recente do STJ e de fundamentos filosóficos do direito, com o objetivo de contribuir para a construção de uma leitura mais coerente, equilibrada e valorizadora da atuação advocatícia nos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.

 

2. A Equidade como Critério de Arbitramento: Limites e Pressupostos

 

O art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil de 2015, estabelece que:

“Nas causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico, ou quando o valor da causa for muito baixo, os honorários serão fixados por apreciação equitativa, observando-se o disposto nos incisos do § 2º.”

 

Esse dispositivo, de inspiração nitidamente principiológica, visa evitar distorções remuneratórias em hipóteses nas quais não seja possível mensurar objetivamente o benefício econômico obtido pela parte vencedora, como ocorre em ações declaratórias, processos de natureza não patrimonial ou, como no caso ora analisado, incidentes processuais com conteúdo jurídico relevante, mas sem repercussão econômica direta mensurável.

Contudo, ao contrário do que muitas vezes se verifica na prática judicial, a equidade aqui prevista não opera como cláusula aberta desvinculada de parâmetros. Ao contrário: ela reclama do julgador um juízo de ponderação ancorado nos critérios objetivos estabelecidos pelo § 2º do mesmo artigo, os quais permanecem obrigatórios mesmo diante da dificuldade de quantificação do proveito.

Assim, ainda que se reconheça a pertinência da utilização da equidade como técnica de fixação de honorários em contextos de baixa liquidez econômica, é fundamental compreender que a sua aplicação exige o devido rigor argumentativo e o compromisso com a valorização substancial da atuação advocatícia. Em outras palavras, o arbitramento por equidade não pode ser convertido em mecanismo de desvalorização do trabalho jurídico sob o pretexto de ausência de base econômica objetiva.

O que se observa em muitos julgamentos, porém, é uma tendência perigosa à uniformização simbólica: valores entre R$ 1.000,00 e R$ 5.000,00 são arbitrados de maneira quase automática, independentemente do grau de complexidade da causa, do tempo despendido, da relevância jurídica da tese sustentada e do impacto direto que o êxito possui para o cliente. Essa prática revela não um uso criterioso da equidade, mas sim uma banalização do instituto, incompatível com os postulados da proporcionalidade, da dignidade da advocacia e do contraditório substancial.

Nesse ponto, a equidade prevista no art. 85, § 8º, do CPC deve ser compreendida como um método de compensação, jamais como um pretexto para subestimar a atuação advocatícia”. Ou seja, o instituto deve operar como um recurso técnico voltado à justa remuneração em hipóteses de difícil mensuração, e não como justificativa para arbitramentos simbólicos e dissociados da realidade da causa[2].

É importante destacar que a equidade no processo civil brasileiro não é sinônimo de discricionariedade ilimitada. Trata-se de um critério jurídico que, por sua própria natureza, exige ponderação entre fatores concretos do caso e a aplicação proporcional da norma, conforme a tradição civilista e a matriz principiológica do CPC/2015. O julgador não pode, sob o manto da equidade, decidir com base apenas em sua impressão subjetiva sobre o valor da atuação, ignorando os elementos objetivos que o próprio ordenamento impõe.

A aplicação da equidade como substituta do raciocínio técnico compromete, inclusive, a previsibilidade do sistema, e isso afeta diretamente a segurança jurídica nas relações contratuais entre advogado e cliente, pois elimina a capacidade de prever — ainda que minimamente — os padrões de remuneração judicial.

O resultado é um ciclo vicioso: valores simbólicos arbitrados judicialmente passam a servir como parâmetro informal para contratos futuros, produzindo, ao longo do tempo, o achatamento sistêmico dos honorários sucumbenciais.

No contexto do IDPJ, isso se agrava. Como se trata de um incidente de natureza contenciosa, com rito próprio, carga probatória autônoma e consequências patrimoniais severas para o terceiro indevidamente incluído no polo passivo da execução, a atuação do advogado não pode ser comparada, em termos de esforço técnico e impacto, à mera manifestação incidental.

É, na prática, um litígio específico dentro do processo, que exige estratégia processual, análise documental aprofundada e, muitas vezes, até mesmo a produção de prova pericial ou testemunhal.

Dessa forma, a escolha pela equidade deve ser acompanhada da demonstração explícita dos fatores objetivos considerados para a fixação do valor. A ausência dessa justificativa fundamentada viola não apenas o art. 85, § 2º, do CPC, mas também o dever constitucional de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88), abrindo margem para críticas doutrinárias e institucionais quanto à legitimidade da fixação arbitrária.

 

3. A Jurisprudência do STJ e o Desafio da Uniformização

A questão da fixação de honorários advocatícios por apreciação equitativa, em especial nos casos de atuação restrita ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ganhou contornos de repercussão nacional com o julgamento do EREsp 1.880.560/RN, pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Naquele leading case, a Corte firmou entendimento no sentido de que, quando a atuação do patrono limitar-se à discussão sobre a legitimidade passiva, sem impugnação ao crédito, e não houver proveito econômico direto ou quantificável, a fixação dos honorários deve observar o disposto no art. 85, § 8º, do CPC, ou seja, ser feita com base em equidade[3].

A tese jurídica reafirma a linha interpretativa majoritária no Tribunal, que reconhece a possibilidade de arbitramento equitativo em hipóteses de indeterminação do valor econômico envolvido. No entanto, a aplicação concreta dessa tese tem gerado críticas substanciais na doutrina e entre os operadores do direito, em razão da ausência de balizas normativas claras que orientem o magistrado na fixação do quantum devido.

Em outras palavras, o problema não reside propriamente na tese fixada — que é juridicamente defensável —, mas na ausência de critérios uniformes, objetivos e transparentes que permitam aplicar a equidade sem que isso implique, na prática, na atribuição de valores simbólicos ou meramente protocolares. Tal realidade se agrava quando se observa que, em diversos julgados, os honorários arbitrados em sede de IDPJ não ultrapassam a faixa de R$ 2.000,00 a R$ 5.000,00, ainda que o incidente envolva valores de execução milionários e atuação altamente especializada.

A problemática ganha contornos ainda mais delicados diante do obstáculo recursal imposto pela Súmula 7 do STJ[4], que veda o reexame de matéria fático-probatória em sede de recurso especial. Isso significa que, uma vez fixados os honorários por equidade na instância ordinária, a possibilidade de revisão em instância superior é virtualmente nula, salvo em hipóteses excepcionais de manifesta violação literal da lei ou inexistência de fundamentação. Na prática, portanto, a decisão do juízo de origem torna-se definitiva quanto ao valor da verba honorária, mesmo quando flagrantemente desproporcional.

Certamente, esse fenômeno gera um paradoxo sistêmico preocupante: embora o art. 85 do CPC de 2015 tenha sido concebido para reforçar o caráter remuneratório e digno da verba honorária, o uso indiscriminado da equidade, aliado à rigidez recursal, fragiliza o próprio conteúdo normativo da regra, esvaziando o seu sentido protetivo original.

Além disso, a ausência de diretrizes interpretativas mais densas favorece a heterogeneidade decisória entre os tribunais, resultando em uma jurisprudência errática, que compromete a igualdade material entre jurisdicionados e a previsibilidade contratual na advocacia. Há situações, por exemplo, em que a mesma atuação técnica gera honorários de R$ 1.000,00 em um tribunal estadual e de R$ 10.000,00 em outro, sem que haja qualquer diferença substancial no conteúdo da demanda. Essa disparidade é incompatível com os princípios constitucionais da isonomia, da segurança jurídica e da moralidade administrativa, os quais devem reger a atividade jurisdicional.

Sob o ponto de vista filosófico, essa realidade entra em tensão com o que Ronald Dworkin denomina de "igual consideração e respeito": todo cidadão tem o direito de ser tratado pelo Estado — e, por consequência, pelo Judiciário — com seriedade moral e coerência institucional[5]. O Estado que fixa valores arbitrários ou irrisórios por um trabalho técnico relevante não apenas falha em reconhecer a dignidade do advogado, mas transmite ao jurisdicionado a mensagem de que sua defesa teve pouco ou nenhum valor intrínseco, o que mina a confiança pública na função judicial.

Portanto, o verdadeiro desafio posto à jurisprudência superior não é apenas o de reafirmar a legitimidade da equidade como critério, mas o de construir um padrão interpretativo confiável, sensível à realidade da atuação advocatícia e compromissado com os princípios da proporcionalidade, da coerência e da justiça substancial.

 

4. Arbitramento por Equidade: Caminhos para uma Interpretação Constitucionalmente Adequada

A cláusula de equidade, prevista no art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil de 2015, deve ser compreendida à luz do ordenamento jurídico como um instrumento de justiça distributiva, voltado à realização do direito em contextos de incerteza quanto ao valor econômico envolvido na causa. Seu uso, portanto, deve ser excepcional, justificado e compatível com os parâmetros constitucionais que regem a remuneração da advocacia.

Mais do que um artifício de conveniência procedimental, a equidade, quando invocada para arbitrar honorários sucumbenciais, deve operar como um critério orientado por princípios — e não como um cheque em branco nas mãos do julgador. Como tal, a sua aplicação precisa respeitar não apenas os critérios legais (art. 85, § 2º, CPC), mas sobretudo os princípios constitucionais que asseguram a dignidade da função advocatícia, a isonomia entre as partes e a integridade do processo justo.

É nesse ponto que se revela a necessidade de uma interpretação constitucionalmente adequada da equidade, conforme ensina Luís Roberto Barroso ao tratar do princípio da conformidade constitucional: toda norma infraconstitucional deve ser lida à luz da Constituição, buscando máxima efetividade aos direitos fundamentais nela consagrados[6].

No caso específico dos honorários advocatícios, essa leitura implica reconhecer que:

·        O art. 133 da Constituição Federal confere ao advogado a condição de indispensável à administração da justiça, assegurando-lhe prerrogativas compatíveis com a essencialidade da função que exerce;

·        O art. 85 do CPC/2015, ao tratar dos honorários sucumbenciais, adotou uma orientação remuneratória (e não meramente indenizatória ou simbólica), como forma de valorizar o trabalho técnico-jurídico e inibir práticas de fixação aleatória de valores;

·        O art. 22 do Estatuto da Advocacia (Lei n.º 8.906/94) reforça essa diretriz, ao prever que os honorários devem ser “fixados com moderação, atendidos os elementos previstos no CPC e no Código de Ética e Disciplina”, preservando a proporcionalidade e a dignidade da profissão.

Dessa forma, a utilização da equidade como parâmetro para fixação dos honorários não pode se traduzir em valor simbólico, padronizado ou desvinculado do esforço técnico exigido, sob pena de se configurar um verdadeiro aviltamento institucional da advocacia, prática que, lamentavelmente, tem se tornado comum, sobretudo nos julgamentos de incidentes como o IDPJ.

É necessário recordar que o princípio da proporcionalidade — em sua dimensão protetiva e proibitiva de excesso — deve guiar o arbitramento da verba honorária também quando se invoca a equidade. Remunerações irrisórias afrontam não apenas o direito subjetivo do profissional, mas enfraquecem a própria estrutura do processo justo, ao desestimular a atuação diligente em defesa do jurisdicionado.

Sob a ótica filosófica, tal como já defendido por Norberto Bobbio[7], um direito que não se efetiva na prática, por ausência de condições materiais mínimas, é apenas uma promessa retórica. Se o advogado é compelido a atuar por valores arbitrados sem relação com o esforço técnico demandado, cria-se um paradoxo ético-jurídico: o sistema exige excelência técnica, mas não oferece, em contrapartida, condições mínimas de reconhecimento dessa entrega.

Em termos institucionais, a continuidade dessa prática prejudica também a previsibilidade contratual. A ausência de critérios objetivos no uso da equidade contamina a confiança legítima que orienta a fixação de cláusulas honorárias entre advogados e seus clientes, sobretudo na advocacia contenciosa, onde a sucumbência é frequentemente usada como parte da composição econômica dos contratos.

Por fim, é importante destacar que a valorização adequada dos honorários — mesmo sob arbitramento equitativo — não é um privilégio da classe dos advogados, mas uma exigência sistêmica de justiça. A defesa técnica qualificada tem custo, exige preparo, responsabilidade, e deve ser remunerada em conformidade com sua natureza.

Portanto, o caminho mais compatível com a Constituição é aquele que reconhece a equidade como técnica de justiça, mas impõe ao julgador o dever de fundamentar, com base nos critérios legais e nos princípios constitucionais, a quantia arbitrada. Quando aplicada de forma consciente, fundamentada e proporcional, a equidade concretiza o direito; quando aplicada de forma automática e simbólica, o perverte.

 

5. Conclusões

Não é mais possível ignorar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) se tornou, na prática forense, muito mais do que um mero apêndice do processo executivo. A sua condução, especialmente quando impõe ao advogado a missão de defender a exclusão de um terceiro do polo passivo, exige um nível de complexidade técnica, responsabilidade estratégica e conhecimento jurídico que, em muitos casos, ultrapassa a própria discussão sobre o mérito da execução.

O que se discutiu neste artigo não é a legitimidade da equidade como critério de fixação de honorários — ela é válida, necessária e bem-vinda em muitos contextos. O que se questiona é o modo como ela vem sendo aplicada: de forma mecânica, padronizada, sem fundamento específico no caso concreto e, pior, frequentemente resultando em valores simbólicos que destoam completamente da atuação exigida.

Ao se fixar valores de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00 como regra — independentemente do grau de complexidade da demanda — a jurisprudência transforma o que deveria ser exceção em rotina, e o que deveria ser justiça corretiva em ferramenta de desvalorização. O problema, portanto, não está na letra da lei, mas na superficialidade com que vem sendo interpretada.

É nesse ponto que o Direito precisa reencontrar sua integridade. Como nos ensina Dworkin, o juiz não decide casos apenas aplicando regras: ele interpreta princípios, leva em consideração o valor das instituições e busca coerência no sistema. Decidir, portanto, não é apenas aplicar o art. 85, § 8º, do CPC — é aplicá-lo à luz da Constituição, dos deveres da magistratura, da dignidade da advocacia (art. 133 da CF), e da exigência de motivação consistente (art. 93, IX, CF).

Do ponto de vista prático, essa banalização da equidade tem efeitos corrosivos. Ela prejudica a confiança nos contratos advocatícios — que se tornam imprevisíveis. Ela enfraquece o papel do advogado como agente de transformação dentro do processo. E ela compromete a própria percepção de justiça, tanto para o profissional que atua quanto para o jurisdicionado que se vê amparado por uma defesa que, ao fim, é remunerada com indiferença institucional.

Mais do que um problema remuneratório, estamos diante de uma questão institucional e ética: o sistema judicial pode, sob o rótulo da equidade, manter uma estrutura de fixação de honorários que ignora o conteúdo da prestação jurisdicional e desestimula a excelência técnica?

A resposta, a meu ver, é negativa.

Se há algo que este debate revela é a necessidade urgente de uma mudança de postura interpretativa. O STJ deu um primeiro passo ao reconhecer a aplicação da equidade nos casos de IDPJ, mas é preciso ir além: construir critérios, promover uniformidade, exigir fundamentação qualificada. Não basta reconhecer a ferramenta — é preciso saber utilizá-la com justiça.

Valorizar a advocacia nesses incidentes não é proteger uma classe, é proteger o processo, a função jurisdicional e, em última instância, o próprio jurisdicionado, que tem o direito de ser defendido com seriedade — e ver essa defesa reconhecida com dignidade.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Livro V, cap. 10.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Comentários ao Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2023. v. 2.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. v. 3.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Coimbra: Almedina, 2016.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). EREsp 1.880.560/RN, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 24 abr. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 5 jun. 2024.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Súmula 7: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Disponível em: https://scon.stj.jus.br. Acesso em: abr. 2025.

 

 



[1] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 2016, p. 115–117.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, v. 3, p. 427.
Os autores abordam, com profundidade, a natureza jurídica dos honorários advocatícios no processo civil contemporâneo, tratando da função remuneratória e das consequências práticas da aplicação da equidade no arbitramento de honorários.

[3] 1.            STJ. EREsp 1.880.560/RN, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 24/04/2024, DJe 05/06/2024.

[4] Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça:


“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”

Enunciado jurisprudencial consolidado que limita a revisão do quantum dos honorários fixados por equidade nas instâncias ordinárias, salvo nos casos de manifesta violação à norma ou ausência de fundamentação.

 

[5] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 272–278.
Dworkin defende a ideia de que o Estado deve tratar todos os cidadãos com igual consideração e respeito, princípio que se reflete na exigência de decisões judiciais coerentes e fundamentadas, especialmente em temas sensíveis como a remuneração da advocacia.

 

[6] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 98–101.
O autor desenvolve a teoria da interpretação conforme a Constituição, defendendo que toda norma infraconstitucional deve ser lida à luz dos princípios constitucionais, com destaque para a máxima efetividade dos direitos fundamentais e a coerência sistêmica das decisões judiciais.

[7] BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Brasília: UNB, 2006, p. 89–93.
Bobbio destaca que um direito não concretizado é um direito apenas formal. A ausência de condições materiais mínimas para a atuação jurídica efetiva — como a remuneração justa do advogado — compromete a realização prática da justiça.

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