SICX – Sistema de Compras Expressas: o novo modelo de contratações públicas e seus riscos ocultos
O Sistema de Compras Expressas (SICX), instituído a partir do Projeto de Lei nº 2.133/2023 e integrado à Lei nº 14.133/2021, inaugura um novo modelo de credenciamento e comércio eletrônico para a Administração Pública. Mais velocidade, menos burocracia – mas também novos riscos de concentração de mercado, padronização indevida e responsabilização de gestores.
Em uma frase: o SICX promete “compras com um clique” para bens e serviços comuns padronizados, porém a verdadeira disputa passa a acontecer antes da contratação, no credenciamento, exigindo muito mais técnica e governança do que o debate público tem revelado.
1. Base legal: como o SICX entra na Lei 14.133/2021
O Senado aprovou o Projeto de Lei nº 2.133/2023, que altera a Lei nº 14.133/2021 para instituir o Sistema de Compras Expressas (SICX), antes idealizado como Sistema de Compra Instantânea (CIX). Na prática, surge uma nova hipótese de credenciamento no artigo 79, inciso IV da Lei de Licitações e Contratos:
“IV – comércio eletrônico: caso em que a Administração visa a contratar bens e serviços comuns padronizados ofertados no Sistema de Compras Expressas (SICX).”
O sistema será integrado ao Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e permitirá que órgãos públicos contratem bens e serviços comuns padronizados de forma direta, com credenciamento de fornecedores regulamentado pelo Poder Executivo Federal.
O SICX não cria uma nova modalidade de licitação, e sim um modelo de contratação direta por credenciamento, ancorado na padronização de objetos e na formação de um catálogo eletrônico oficial.
2. Como o SICX pretende funcionar na prática
A lógica do SICX é aproximar a Administração de um e-marketplace governamental, em que os fornecedores credenciados oferecem seus produtos e serviços padronizados, e os órgãos compradores selecionam o item desejado e contratam de forma imediata.
A ideia é especialmente voltada para:
- itens recorrentes (material de expediente, limpeza, mobiliário padrão, equipamentos comuns);
- serviços de baixa complexidade técnica e com escopo padronizável;
- contratações com baixo risco tecnológico e alta repetitividade.
| Objetivo oficial | Efeito prático esperado |
|---|---|
| Reduzir custos administrativos | Menos processos licitatórios para itens padronizados e recorrentes |
| Ganhar velocidade | Contratação imediata após a escolha do item no catálogo |
| Padronizar bens e serviços comuns | Especificações únicas, replicáveis em todo o Poder Público |
| Dar previsibilidade ao fornecedor | Fluxo contínuo de demanda a partir do credenciamento bem-sucedido |
Na prática o gestor acessa um catálogo digital oficial, escolhe o item padronizado e conclui a contratação com poucos cliques, dentro dos limites orçamentários e das regras de uso do SICX.
3. Credenciamento: a competição muda de lugar
Um ponto central, e muitas vezes ignorado, é que o credenciamento, na forma prevista na Lei nº 14.133/2021, é um procedimento auxiliar, não uma modalidade de licitação. Isso significa que a competição não desaparece, mas é deslocada:
- Antes do SICX: a disputa ocorre entre propostas em uma licitação (ex.: pregão eletrônico).
- Com o SICX: a disputa ocorre na fase de credenciamento, para entrar no catálogo padronizado.
Isso exige atenção reforçada ao artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que mantém o dever de licitar como regra geral. Se a padronização for desenhada para “fechar o catálogo” e excluir concorrentes, haverá evidente violação aos princípios da isonomia, impessoalidade e competitividade, ainda que a “forma jurídica” pareça correta.
Tribunais de contas já vêm identificando abusos no uso do credenciamento – como fracionamento de despesas, desvio do Plano de Contratações Anual, padronização direcionada e criação artificial de reservas de mercado. Com o SICX, esses riscos tendem a se intensificar se não houver governança robusta.
3.1. Caso prático: padronização que esconde direcionamento
Imagine um órgão público que, ao cadastrar cadeiras ergonômicas no SICX, exige:
- densidade de espuma muito específica;
- tipo de costura exclusiva;
- composição de material pouco comum;
- cor, acabamento e detalhes que, na prática, somente duas fabricantes no país conseguem atender.
O resultado? Preço 30% acima da média, exclusão de pequenas empresas locais e concentração do mercado em poucos fornecedores. Formalmente, tudo “padronizado”; materialmente, um catálogo que favorece poucos.
Conclusão: a padronização é técnica na aparência, mas direcionadora na essência.
4. Lições dos Estados Unidos: GSA Advantage e Commercial Platforms Program
Para entender onde o Brasil pode acertar ou errar com o SICX, vale olhar para os modelos norte-americanos.
4.1. GSA Advantage – o “marketplace público” maduro
Em outubro de 2005, foi criado o GSA Advantage, o maior marketplace público do mundo, sob gestão da General Services Administration (GSA). Nele, o governo norte-americano pode adquirir:
- uma caneta por US$ 0,25;
- um helicóptero de mais de US$ 7 milhões;
- serviços complexos, como o fretamento de um Boeing 747 por hora.
Os contratos são organizados em schedules, semelhantes às atas de registro de preços brasileiras, porém fruto de um processo seletivo rigoroso, que pode levar meses. Mesmo com plataforma funcionando há décadas, o sistema não dispensou o dever de procedimento concorrencial: novas licitações continuam ocorrendo diariamente, com suas peculiaridades.
4.2. Commercial Platforms Program – pequenas compras com grandes lições
Em 2020, após dois anos de preparação, os EUA lançaram o Commercial Platforms Program, com plataformas privadas como Amazon, Overstock e Fisher Scientific. O objetivo era tornar mais ágil a aquisição de pequeno vulto, inicialmente até cerca de US$ 10 mil.
O diferencial é que o usuário final (e não necessariamente o agente de contratação) realiza a compra diretamente na plataforma, mas dentro de um ecossistema de:
- fornecedores previamente cadastrados em algo similar ao SICAF brasileiro (o System for Award Management – SAM);
- regras de impedimentos e penalidades;
- rastreabilidade total do que foi comprado, por quem, quando e por qual preço.
| Experiência dos EUA | Risco se ignorada no Brasil |
|---|---|
| Filtros regulatórios rígidos nas plataformas | Compra de produtos irregulares (ex.: drones sem homologação da Anatel) |
| Processo seletivo robusto para fornecedores | Credenciamento excessivamente amplo ou pouco criterioso |
| Monitoramento constante de preços e desempenho | Tabelas congeladas, descontinuidade de fornecimento e baixa qualidade |
| Integração com programas socioeconômicos | Esquecimento de ME/EPP e perda de políticas de desenvolvimento local |
4.3. Caso prático: produto irregular no catálogo
Imagine o SICX permitindo a compra de um drone importado sem registro na Anatel ou sem observância das normas da aviação civil. O órgão compra, não consegue usar, e ainda viola regulamentação setorial, gerando:
- risco jurídico para o gestor;
- prejuízo financeiro ao erário;
- risco à segurança pública.
Lição: marketplace público ou privado sem filtro regulatório prévio é convite para descontrole.
5. Impacto para microempresas, pequenas empresas e o desenvolvimento local
A padronização excessiva ou mal desenhada pode afastar microempresas e empresas de pequeno porte, contrariando o tratamento favorecido da Lei Complementar nº 123/2006. Programas de preferência, cotas e benefícios para ME/EPP podem ser esvaziados se o catálogo for construído apenas com requisitos típicos de grandes fabricantes.
Exemplo simples: se o SICX exigir que determinado produto possua série de certificações internacionais que não são estritamente necessárias, várias pequenas empresas locais ficarão automaticamente excluídas, ainda que possam fornecer com qualidade adequada.
Em outras palavras: a forma como o catálogo é montado influencia diretamente quem participa do jogo econômico público.
6. ETP, governança e a nova responsabilidade do gestor
Talvez o ponto mais sensível, e menos debatido, seja o papel do Estudo Técnico Preliminar (ETP) na era do SICX. Se a compra passa a ser “expressa”, o ETP não pode ser “raso”.
Um ETP compatível com o SICX deve responder, minimamente:
- Por que o objeto pode (ou não) ser padronizado?
- Quais impactos dessa padronização sobre a competitividade e a participação de ME/EPP?
- Qual a metodologia de estimativa de preço (pesquisa ampla, comparações, históricos)?
- Como serão atualizados preços e especificações ao longo do tempo?
- Existe risco de concentração de mercado? Como será mitigado?
A partir do SICX, a responsabilidade do gestor deixa de ser apenas pela contratação pontual e passa a alcançar a arquitetura do catálogo. Quem desenha o padrão assume, na prática, parte do risco de direcionamento, sobrepreço ou inviabilidade futura.
6.1. Caso prático: tabela congelada e colapso do fornecimento
Suponha que o SICX fixe o preço de kits de manutenção de computadores em R$ 650,00, com validade de 24 meses. Após oito meses, há inflação dos insumos e aumento do dólar, e o preço de mercado chega a R$ 1.100,00.
Sem mecanismo de reajuste, os fornecedores:
- abandonam o catálogo, por inviabilidade econômica; ou
- passam a fornecer produtos de baixíssima qualidade para não trabalhar com prejuízo.
Em ambos os cenários, a Administração perde. Daí a importância de prever revisões periódicas, critérios transparentes de reajuste e mecanismos de saída e entrada de novos fornecedores.
7. Indicadores que o SICX deveria criar desde o início
Para que o SICX não se transforme em uma “caixa-preta digital”, alguns indicadores de governança deveriam ser previstos:
- Índice de Diversidade de Fornecedores (IDF): mede concentração de mercado por item.
- Média de Atualização de Preço (MAP): acompanha com que frequência os valores são revistos.
- Índice de Participação de ME/EPP: mostra se a política de favorecimento está funcionando.
- Risco Regulatório (RR): identifica itens potencialmente em desacordo com normas setoriais.
- Índice de Eficiência Comparativa (IEC): compara o SICX com pregões e outras formas de contratação em termos de preço e prazo.
Sem métricas claras e publicizadas, será difícil para o controle interno, externo e para a sociedade verificar se o SICX é realmente mais eficiente do que as formas tradicionais de contratação.
8. Conclusões: inovação necessária, mas com freios e contrapesos
Primeira conclusão: o SICX não elimina o dever de licitar. Ele desloca a disputa para a porta de entrada do sistema – o credenciamento – e exige que essa fase seja tratada com rigor semelhante ao de uma licitação.
Segunda conclusão: a grande virtude do SICX é a celeridade em compras recorrentes; o grande risco é transformar a padronização em instrumento de fechamento de mercado.
Terceira conclusão: gestores e equipes técnicas precisarão fortalecer o Estudo Técnico Preliminar e os mecanismos de revisão de catálogo, sob pena de assumirem responsabilidade objetiva e subjetiva por direcionamento, sobrepreço ou inviabilidade econômica.
Quarta conclusão: as experiências do GSA Advantage e do Commercial Platforms Program mostram que marketplaces governamentais funcionam, desde que acompanhados de filtros regulatórios, indicadores e controles permanentes.
Quinta conclusão: a redução de custos de processos licitatórios é apenas um lado da moeda. O outro lado envolve os “custos sombra” – concentração de mercado, exclusão de ME/EPP, rigidez de catálogo e riscos regulatórios. Ignorar esses fatores torna qualquer “economia” meramente aparente.
Monte um diagnóstico simples: identifique quais compras são realmente recorrentes, se o mercado é competitivo, como a padronização afetará ME/EPP e quais riscos regulatórios existem. A partir disso, o SICX pode ser ferramenta de eficiência – não de problema.
Responda às perguntas abaixo e veja se já está preparado para discutir o tema em nível avançado.
Checklist rápido: seu órgão está preparado para o SICX?
Algumas dúvidas que costumam surgir quando se fala em compras expressas e credenciamento.
O SICX acaba com o pregão e com as licitações tradicionais?
Não. O SICX é um modelo de contratação direta por credenciamento para bens e serviços comuns padronizados. O pregão e as demais modalidades continuam essenciais, especialmente para itens complexos, não padronizáveis, contratos de maior vulto e situações em que a disputa de propostas ainda é a forma mais eficiente de garantir economicidade.
Credenciamento é o mesmo que licitação?
Não. O credenciamento é um procedimento auxiliar, não uma modalidade licitatória. Ainda assim, deve respeitar os princípios constitucionais da Administração Pública, especialmente isonomia, impessoalidade, publicidade e eficiência. Se usado como “atalho” para evitar concorrência, poderá ser questionado pelos órgãos de controle e pelo Judiciário.
Como o SICX impacta as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte?
Tudo depende de como a padronização será desenhada. Se as especificações forem razoáveis, ME/EPP podem se integrar ao catálogo e aproveitar a previsibilidade de demanda. Se os requisitos forem desnecessariamente rígidos, o efeito será de exclusão e concentração de mercado, contrariando a Lei Complementar nº 123/2006.
Quais são os maiores riscos para o gestor?
Os riscos principais envolvem: padronização direcionada, preços acima ou abaixo da realidade do mercado (com consequentes problemas de qualidade e continuidade), desrespeito a normas regulatórias setoriais e omissão no monitoramento do catálogo. O gestor que “assina” o padrão passa a responder não só pela contratação, mas pela arquitetura da solução.
O que podemos aprender com os modelos dos Estados Unidos?
Que é possível combinar agilidade e controle: marketplaces governamentais podem funcionar com seleção criteriosa de fornecedores (como nos schedules da GSA), filtros regulatórios, rastreabilidade de cada compra e indicadores permanentes de desempenho. Copiar apenas a “fachada digital” sem importar a governança é receita certa para problemas.
Este artigo tem caráter informativo e não substitui a análise jurídica específica de cada caso concreto. A aplicação do SICX, bem como a modelagem do credenciamento, deve sempre levar em conta o contexto normativo, as orientações dos órgãos de controle e as peculiaridades de cada Administração.