uma
regra, uma teoria ou um princípio?
Primeiramente,
é necessário distinguirmos conceitos para melhor compreensão do objeto de
estudo, pois atualmente, tem-se uma confusão conceitual sobre qual categoria da
ciência jurídica é a reserva do possível,
visto que a doutrina e a jurisprudência tem apresentado cada um com se
ponto de vista e por diversas formas, entendendo como uma teoria, princípio ou mesmo uma regra.
A observância dos
fundamentos de cada proposição leva-nos a trilhar por caminhos diversos, porém,
não pode ficar sem a adequada resposta ao ponto de mutilação ao plano de
existência de institutos da ciência. Certamente, a habilidade do interprete ao
traçar caminhos interpretativos, logicamente também observará soluções, tanto
teóricas como práticas.
Assim, se uma
determinada teoria pretende-se a
apresentar uma hipótese devidamente comprovada com evidências válidas, pode
inclusive, explicar um fenômeno. Afora da ciência jurídica, temos a famosa
teoria da relatividade formulada por Albert Einstein.
Em nosso
sistema jurídico atual, inexiste a definição entre regra e princípio, cabendo
outra vez, ao interprete ou cultor da ciência jurídica, ao se deparar com o
texto, observar o sentido jurídico, de acordo com a hermenêutica.
É preciso estabelecer
que, as normas jurídicas são o
gênero das espécies normas-regras e normas jurídicas. Geralmente, as normas
jurídicas se expressa como a forma que o direito se expressa para atuação de
uma realidade, buscando-se a fatores axiológicos, ou seja, proveniente da
teoria dos valores instrumentalizados, ao prescrever, determinar ou traçar um
mandamento, de modo a introduzir a justiça
e a ordem na vida em sociedade. A imperatividade impõe como elemento
propulsor em efeitos obrigacionais juridicamente aos seus destinatários, assim
como, traça garantias para imposição de seu devido cumprimento ou promover as consequências,
em caso de seu descumprimento a tais destinatários.
Com base nas lições
do saudoso Prof. Ronaldo Dworkin, podemos sumariamente afirmar que, as
regras provêm de relatos descritivos
de comportamento, no qual a aplicação está umbilicalmente relacionada à
subsunção do fato a previsão em abstrato. O referido autor retrata que em
eventual conflito de determinadas regras jurídicas, deverá observar a dimensão
ideológica do tudo ou nada, prevalecendo uma norma diante de eventual conflito
de regras.
Em tratando de
princípios,
são juridicamente considerados como descritivos de modo mais abstrato, sendo
que não será possível observar determinada conduta sem ser analisado a cada
caso concreto, no qual a melhor que mais se adequa diante daquela situação especifica,
conforme o juiz de valores ou dimensões éticas.
A importância dos
princípios no cenário atual detém um tratamento como normas primárias, na mesma
posição de regras jurídicas, porém, isto não significa que em eventual lacuna
ou vácuo normativo os princípios devam ser aplicados, cabendo aloca-los
conforme a sua real posição, referencialmente ao juízo de ponderação e de sua
reserva de valores.
Feitas tais
colocações específicas acerca de teorias, regras, normas e princípios,
restam-se apenas responder onde está alocada a reserva do possível.
Com base ao
que foi apresentado, podemos concluir alguns acertos e desacertos, quanto a
terminologia que mais se adequa. Vejamos :
1. A reserva do possível não é uma teoria!,
Pois não apresenta uma base hipotética por estudos comprovados que traçam
evidências assertivas, sob um determinado fenômeno jurídico.
Assim, não se
pode afirmar que exista a teoria da
reserva do possível pretende-se a apresentar uma hipótese devidamente comprovada
com evidências válidas, pode inclusive, explicar um fenômeno jurídico.
Na
jurisprudência a leitura que se faz ao entender que a reserva do possível como
uma teoria que detém de um caráter negativo do que positivo. Citamos um caso
recente datado em 10/09/2020, que o Tribunal de Justiça obrigou o Município de
Rio Largo/AL contratar professores para auxiliar alunos com autismo. Na
referida decisão, o voto do Desembargador Fábio José Bittencourt Araújo, relator
do processo, destacou que a invocação da teoria
da reserva do possível não pode ser
utilizada como escudo para o ente público se eximir do cumprimento de suas
obrigações prioritárias[1].
2.
A
Reserva do Possível não é uma regra nem norma jurídica: A explicação é
simples. Se não há expressa previsão legal, logo, não possui tratamento de
regra ou norma jurídica.
Em síntese, as
normas jurídicas possuem um processo legislativo para que tenha sua vigência e eficácia,
ao passo que, não havendo uma lei tratando sobre a reserva do possível não pode
ser considerada como se lei fosse.
3. A Reserva do Possível deve ser então
tratada como um princípio?
Para que
possamos apresentar uma resposta aproximada, com base na ciência jurídica, em
primeiro lugar, devemos compreender pelo menos sua origem, objetivando traçar
contornos princiológicos ou não.
A reserva do possível surgiu no Direito Comparado, no qual foi aplicada
na década de 70, pelo Tribunal Federal Alemão, numa ação judicial proposta por
estudantes não admitidos em escolas de medicina em decorrência do limite do
número de vagas em cursos superiores.
Na referida ação judicial promovida por estudantes alemães,
fundamentou-se no art. 12 da Lei Fundamental da Alemã, ao tratar como um
direito de todos os alemães escolher livremente sua profissão, local de
trabalho e seu centro de formação.
O Tribunal Constitucional Alemão entendeu que o número de aumento de vagas
seria em inconformidade da pretensão de deduzida com o objetivo de sua
efetivação prática.
Em nosso sistema judicial brasileiro, como elemento
de proteção e efetivação de Direitos previstos na Carta Maior de 1988, a
disponibilidade publica de recursos financeiros tornou-se cada vez mais
necessária para a realização pautada no critério (des) valoração.
Baseando-se na
referida decisão do Tribunal Constitucional Alemão, no Brasil o Supremo
Tribunal Federal aberrou-se da “teoria da
reserva do financeiramente possível” em que a realização de direitos econômicos,
sociais e culturais depende do inescapável vínculo financeiro, estando
umbilicalmente ligado as possibilidades orçamentárias do Estado, desde que
comprovada de forma objetiva a incapacidade econômico-financeira, não se
exigindo a sua implementação prevista na Carta Maior de 1988.
Assim, o STF
tratou a reserva do possível como uma dimensão categórica ou provisional,
devendo apresentar tais características, como:
a) Disponibilidade fática de recursos: no
qual deverá resguardar a todos, num critério mais abrangente do que numa forma
única e individualizada, trazendo muito mais efetividade de demandas
semelhantes;
b) Disponibilidade jurídica de recursos:
atenta-se como uma solução com vistas de trazer maior efetividade de Direitos
Fundamentais, cabendo ao Poder Judiciário intervir em caso que houver a
violação, entretanto, não poderá o referido Poder violar a intervenção de
outros poderes da República Federativa do Brasil (Poder Executivo e
Legislativo), como critério de ponderação.
Quanto ao
critério de ponderação na atuação do Poder Judiciário, o afastamento arbitrário
deverá ser recorrente, pois caso agir em afronta ao princípio de repartição
entre os poderes, via de consequência, caracterizará como uma espécie de
ativismo judicial.
Assim,
o melhor caminho a ser trilhado pelo Poder Judiciário é a observância de uma
intervenção mínima judicial, conforme apresentado previamente. Entretanto, a
intervenção mínima é um dos grandes desafios em tempos atuais, visto que os cidadãos
não podem sofrer com atos omissivos dos outros poderes, especialmente não comprometimento
da eficácia dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988.
A
técnica de ponderação das decisões
judiciais como elemento de determinação de medida excepcional torna-se mais
efetiva na proteção de direitos, ao passo que, de modo algum deverá trazer
qualquer margem de discricionariedade, devendo atuar de forma legitima.
Na jurisprudência
atual, podemos citar como exemplos, a obrigação da Administração Pública por
meio de decisão judicial manter um estoque específico de medicamento no combate
de determinada doença grava, afim de que se evitem futuras interrupções no
tratamento em prol da população[2]; ou mesmo situações em que
determine a Administração Pública a realizar obras ou reformas emergenciais em presídios
com o escopo de garantir os direitos fundamentais dos presos, especificamente,
a integridade física e moral, não podendo ser aplicada a reserva do possível,
muito menos a afronta da separação dos Poderes[3].
Destaque para
a decisão do STJ, que negou o recurso do Estado do Mato Grosso, aplicando o
mínimo existencial[4]:
"Desse modo, somente depois de atingido
esse mínimo existencial é que se poderá pensar, relativamente aos recursos
remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Claro, se não se pode
cumprir tudo o que assegurado pela Constituição, deve-se, ao menos, garantir
aos cidadãos esse piso basilar de direitos essenciais à vida, entre os quais,
sem a menor dúvida, há de se incluir padrão mínimo de dignidade às pessoas
encarceradas em estabelecimentos prisionais”
c)
Razoabilidade/Proporcionalidade
Os reais fatores de dimensão devem ser pautados em um determinado
caso concreto, de modo, a não recepcionar qualquer tese defensiva do Estado de
não conseguir aplicar a efetividade de direitos fundamentais previstos
constitucionalmente, pois, a sua conduta negativa culminará no severo
aniquilamento ou nulificação de tais direitos, trazendo por consequência, a “constituição
letra morta” ou sem valor algum, em sua praticabilidade.
É neste sentido
que, se trata de uma incumbência do Poder Público promover de forma justa e
razoável os Direitos Fundamentais, devendo comprovar de forma satisfatória
por meio de prova cabal que não consiga cumprir com sua efetividade de
direitos.
Apresentados
os apontamentos inerentes da reserva do
possível, podemos concluir que deva ser tratado como um princípio, tendo em vista que em muitas situações é empregado com
valores específicos para ser aplicado a cada caso concreto, possuindo uma
dimensão de peso diante de uma realidade fático-jurídica.
Significa dizer
que, não pode ser considerado como um instituto “pejorativo ou enganador” do sistema jurídico, pois nas ocasiões em
que tentaram aplica-lo, buscava o Poder Executivo e Legislativo de eximir-se das
obrigações de promover determinados Direito Fundamentais, ao passo que, num
aspecto positivo, não se pode ignorar a presença da disponibilidade fática,
jurídica e com a devida razoabilidade/proporcionalidade, podendo ser muito mais
ser efetivo em prol de direitos, contextualizando a realidade, sem deixar a
Constituição Federal de 1988 e demais leis, como se fossem mera folhas de papel
escritas, traçando contornos mais sólidos.
Nesta trilha
de raciocínio, interessante a posição do Prof. Português José Joaquim Gomes
Canotilho[5], ao criticar:
“Rapidamente se aderiu à construção
dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) para traduzir a
ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro
nos cofres públicos. Um direito social sob “reserva dos cofres cheios”
equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica”
E o embate entre Reserva do Possível e o Mínimo Existencial?
Hodiernamente,
em se tratando de aplicação à Direitos Fundamentais (como direito a vida, saúde,
educação, etc), os holofotes estão sempre voltados a atuação dos Poderes, que
por vezes, o Legislativo e o Executivo não dão a resposta em tempo hábil,
cabendo ao Poder Judiciário solucioná-lo, mas de forma prudente e adequada.
É sobre este
ponto que, o mínimo existencial, no qual entendemos ser tratado com um
princípio devido aos valores irradiados por uma norma jurídica, como a CF/88,
retrata bem o plano de existência que os cidadãos possam objetivar ao estado,
como condições materiais e elementares de sobrevivência e, caso descumprimento,
ensejará na real violação das normas constitucionais.
Trata-se,
portanto, da definição mais adequada do Princípio do Mínimo Existencial, ao
passo que, não se limita em determinado tempo e local, pois, orienta objetivos
primários do Estado, que devem ser avaliados e ponderados, segundo as condições
mínimas de existência, devendo englobar direitos como:
·
Saúde
·
Educação
·
Assistência
aos desamparados, como por exemplo, alimentos, vestuário, abrigo, etc.
·
Acesso à
Justiça
Neste aspecto,
o Princípio do Mínimo Existencial é interpretado como elemento sólido de juízo de
valor, pois diante de um caso concreto, na escolha entre princípios estará em
seu grau mais elevado, ou seja, hierarquicamente superior aos outros demais, não
podendo ser olvidado de plano.
Ademais, os
Tribunais Superiores têm entendido que os embates entre a reserva do possível e o mínimo
existencial são frequentes na prática e a judicialização revela como necessária, isto é, a transferência para o Poder Judiciário de
decisões sobre o reconhecimento e concretização de direitos.
Ocorre que,
deve-se criticar a visão deturpada, conceitos vagos ou indeterminados ao
posicionar o princípio da reserva do possível como algo negativo e o princípio
do mínimo existencial, como positivo. Certamente, quando estamos a tratar sobre
princípios devem ser aplicados caso a caso, conforme suas características devidamente
moldadas.
Num confronto
entre princípios, o Superior Tribunal de Justiça entendeu como válido e eficaz
para a promoção de direitos sociais, especialmente ao direito à saúde, como um
direito básico e que o princípio do mínimo existencial deverá ser aplicado
quando houver a incompetência na inadequada implementação de programação
orçamentária e a incapacidade para gerir recursos públicos, devendo ser concretizados
direitos em prol de pessoas desfavorecidas, com base nos artigos 196 e 197 da
Constituição Federal de 1988, inclusive, impondo ao Estado o inafastável dever
de cumprir os tais direitos.
É claro que a
justificativa é plausível, visto que a omissão Estatal irá cada vez mais
culminar no aumento de demandas judiciais, sejam individuais ou coletivas que
obriguem ao seu devido cumprimento e implementação de Direitos. Citamos alguns
exemplos, como: as ações de fornecimento de medicamentos, vagas de leitos
hospitalares em UTIs, custeio de tratamento médico fora do domícilio, exames
médicos, órteses, próteses, etc.
Diante deste
quadro, não nos parece adequado aplicar o princípio da reserva do possível,
cabendo ao Poder Judiciário aloca-lo para segundo plano e, em primeiro plano o
princípio do mínimo existencial, como fonte central, a dignidade da pessoa
humana.
Se o Princípio Do Mínimo Existencial é a
regra, como tem sedimentada a responsabilidade no tocante a Assistência a Saúde?
Na visão do
STF, a responsabilidade da assistência à saúde é solidária entre os entes
federativos, ou seja, cabe a União, os Estados e os Municípios promover o
direito à saúde para a população (RE 855.178).
Podemos citar
um recente caso, dentre muitos, que a Justiça condenou determinado município a
custear exames de portador de epilepsia[6]. Na referida decisão, o
magistrado entendeu que “o direito à
saúde está fortemente ligado à qualidade
de vida, concretizando, pois, o princípio
do mínimo existencial, ou seja, um conjunto de condições fundamentais para que se viva com dignidade”.
Afora da
aplicação de casos de saúde, a justiça já decidiu que determinado município
garanta o transporte público para estudantes de povoados, no qual a magistrada
fundamentou como elemento necessário ao Direito à Educação, citando o artigo
205 da Constituição Federal segundo o qual a educação é um direito fundamental,
além de um dever do Estado. “Ora, para que seja mantido o mínimo de dignidade
humana, consistente no mínimo
existencial, necessário que os direitos subjetivos, fundantes de todos os
cidadãos, sejam respeitados, tais quais o direito à educação[7]”.
Portanto, em
regra, o cidadão poderá promover uma medida judicial em face dos entes da
federação, seja em conjunto ou de forma separada, entretanto, se houver relação
quanto às ações que versem sobre o fornecimento de medicamentos sem o registro
da ANVISA, a ação será promovida em face da União Federal.
[1]
https://noticiasconcursos.com.br/mundo-juridico/municipio-de-rio-largo-al-deve-contratar-professores-para-auxiliar-alunos-com-autismo/
[2]STF,
RE 429.903, 2004.
[3]
STF, RE 592581, Relator: Min. RICARDO
LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015).
[4]
REsp 1.389.952.
[5]
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed.
Coimbra: Edições Almedina, 2004. P. 481.
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