Por Luiz Fernando Pereira – Advogado e Consultor Jurídico. Especialista em Direito Processual Civil, com sólida formação nacional e internacional. Atua em contencioso estratégico, consultoria jurídica, Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito Público, com ênfase na defesa de servidores públicos, inclusive em processos administrativos disciplinares. Advogado junto ao CREMESP. Atua como advogado dativo perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e a Justiça Federal. Foi advogado dativo do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e das Comissões de Direito Processual Civil, Direito Constitucional e Administrativo, Direito Médico e da Saúde, e Acidente do Trabalho da OAB/SP. Mantém o blog jurídico drluizfernandopereira.blogspot.com e canal próprio no YouTube, onde compartilha conteúdo técnico sobre temas contemporâneos do Direito.
Artigo inédito a ser submetido à revista especializada em Direito
Processual.
1. Introdução
O incidente de
desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), expressamente positivado no
Código de Processo Civil de 2015 (arts. 133 a 137), consolidou-se como uma das
mais relevantes inovações processuais da última década. Trata-se de um
instrumento que visa conferir efetividade à execução, ao permitir que o credor
responsabilize diretamente pessoas naturais ou jurídicas ligadas ao devedor
principal, mediante demonstração de desvio de finalidade ou confusão
patrimonial — elementos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica.
Na prática
forense contemporânea, o IDPJ tornou-se uma ferramenta recorrente,
especialmente em execuções de natureza cível, empresarial e fiscal, funcionando
como mecanismo de superação dos limites formais entre a pessoa jurídica e seus
membros, em situações em que o patrimônio da empresa não é suficiente para
satisfazer a dívida executada.
O crescente
protagonismo do incidente, contudo, trouxe consigo questões jurídicas ainda
não suficientemente equacionadas pela jurisprudência e pela doutrina,
especialmente no que tange à remuneração do trabalho advocatício quando a
atuação se dá exclusivamente na defesa do terceiro incluído no polo passivo do
feito executivo.
O vácuo
normativo se revela mais agudo quando se verifica que, na maioria das vezes, o
profissional é contratado apenas para atuar nesse incidente, sem qualquer
vínculo com a execução principal ou com eventual embargos. Em tais situações, não
há proveito econômico direto mensurável nos moldes clássicos da sucumbência,
o que tem levado os tribunais a aplicarem, de forma quase automática, o art.
85, § 8º do CPC, que permite o arbitramento dos honorários por equidade nas
hipóteses em que o valor da causa é irrisório, inestimável ou inexistente.
Essa solução,
embora normativamente válida, tem gerado profunda inquietação na comunidade
jurídica, pois vem sendo interpretada de forma redutora, resultando na
fixação de honorários em patamares simbólicos, muitas vezes desconectados da
real complexidade do trabalho realizado.
O que se vê,
na prática, é uma tendência à padronização de valores baixos — frequentemente
arbitrados entre R$ 1.000,00 e R$ 5.000,00 — independentemente da carga
probatória exigida, da responsabilidade envolvida ou da relevância econômica da
execução principal.
Nesse
contexto, surge a pergunta que motiva este artigo: é juridicamente aceitável
— e eticamente defensável — que a atuação autônoma e tecnicamente qualificada
em um IDPJ seja sistematicamente remunerada de forma simbólica, sob a
justificativa de ausência de proveito econômico direto?
Tal
questionamento não é meramente retórico, mas está no cerne da discussão sobre a
dignidade da advocacia, a função jurisdicional e os critérios de justiça na
fixação de honorários advocatícios.
Como se
demonstrará ao longo deste estudo, o problema está menos no uso da equidade
como critério — que é legítimo e necessário em diversos contextos — e mais na forma
com que ela vem sendo aplicada, desprovida de critérios objetivos, de base
argumentativa densa e, principalmente, de sensibilidade à realidade da atuação
profissional. Ao tratar o IDPJ como um apêndice da execução e ao
desconsiderar a natureza contenciosa e estratégica do incidente, o Judiciário,
muitas vezes, incorre naquilo que Gustav Radbruch[1]
chamaria de uma “injustiça legal” — uma aplicação formal da norma que
contraria os valores materiais da justiça e da proporcionalidade.
Neste artigo,
busca-se então revisitar o tema à luz do direito processual civil, da
jurisprudência recente do STJ e de fundamentos filosóficos do direito, com
o objetivo de contribuir para a construção de uma leitura mais coerente,
equilibrada e valorizadora da atuação advocatícia nos incidentes de
desconsideração da personalidade jurídica.
2. A Equidade como Critério de
Arbitramento: Limites e Pressupostos
O art. 85, §
8º, do Código de Processo Civil de 2015, estabelece que:
“Nas
causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico, ou quando o
valor da causa for muito baixo, os honorários serão fixados por apreciação
equitativa, observando-se o disposto nos incisos do § 2º.”
Esse
dispositivo, de inspiração nitidamente principiológica, visa evitar
distorções remuneratórias em hipóteses nas quais não seja possível mensurar
objetivamente o benefício econômico obtido pela parte vencedora, como
ocorre em ações declaratórias, processos de natureza não patrimonial ou, como
no caso ora analisado, incidentes processuais com conteúdo jurídico relevante,
mas sem repercussão econômica direta mensurável.
Contudo, ao
contrário do que muitas vezes se verifica na prática judicial, a equidade aqui
prevista não opera como cláusula aberta desvinculada de parâmetros. Ao
contrário: ela reclama do julgador um juízo de ponderação ancorado nos
critérios objetivos estabelecidos pelo § 2º do mesmo artigo, os quais
permanecem obrigatórios mesmo diante da dificuldade de quantificação do
proveito.
Assim, ainda
que se reconheça a pertinência da utilização da equidade como técnica de
fixação de honorários em contextos de baixa liquidez econômica, é fundamental
compreender que a sua aplicação exige o devido rigor argumentativo e o
compromisso com a valorização substancial da atuação advocatícia. Em outras
palavras, o arbitramento por equidade não pode ser convertido em mecanismo
de desvalorização do trabalho jurídico sob o pretexto de ausência de base
econômica objetiva.
O que se
observa em muitos julgamentos, porém, é uma tendência perigosa à uniformização
simbólica: valores entre R$ 1.000,00 e R$ 5.000,00 são arbitrados de
maneira quase automática, independentemente do grau de complexidade da causa,
do tempo despendido, da relevância jurídica da tese sustentada e do impacto
direto que o êxito possui para o cliente. Essa prática revela não um uso
criterioso da equidade, mas sim uma banalização do instituto,
incompatível com os postulados da proporcionalidade, da dignidade da advocacia
e do contraditório substancial.
Nesse ponto, a
equidade prevista no art. 85, § 8º, do CPC deve ser compreendida como um método
de compensação, jamais como um pretexto para subestimar a atuação advocatícia”.
Ou seja, o instituto deve operar como um recurso técnico voltado à justa
remuneração em hipóteses de difícil mensuração, e não como justificativa
para arbitramentos simbólicos e dissociados da realidade da causa[2].
É importante
destacar que a equidade no processo civil brasileiro não é sinônimo de
discricionariedade ilimitada. Trata-se de um critério jurídico que, por sua
própria natureza, exige ponderação entre fatores concretos do caso e a
aplicação proporcional da norma, conforme a tradição civilista e a matriz
principiológica do CPC/2015. O julgador não pode, sob o manto da equidade,
decidir com base apenas em sua impressão subjetiva sobre o valor da atuação,
ignorando os elementos objetivos que o próprio ordenamento impõe.
A aplicação da
equidade como substituta do raciocínio técnico compromete, inclusive, a
previsibilidade do sistema, e isso afeta diretamente a segurança jurídica
nas relações contratuais entre advogado e cliente, pois elimina a
capacidade de prever — ainda que minimamente — os padrões de remuneração
judicial.
O resultado é
um ciclo vicioso: valores simbólicos arbitrados judicialmente passam a
servir como parâmetro informal para contratos futuros, produzindo, ao longo do
tempo, o achatamento sistêmico dos honorários sucumbenciais.
No contexto do
IDPJ, isso se agrava. Como se trata de um incidente de natureza contenciosa,
com rito próprio, carga probatória autônoma e consequências patrimoniais
severas para o terceiro indevidamente incluído no polo passivo da execução, a
atuação do advogado não pode ser comparada, em termos de esforço técnico e
impacto, à mera manifestação incidental.
É, na prática,
um litígio específico dentro do processo, que exige estratégia
processual, análise documental aprofundada e, muitas vezes, até mesmo a
produção de prova pericial ou testemunhal.
Dessa forma, a
escolha pela equidade deve ser acompanhada da demonstração explícita dos
fatores objetivos considerados para a fixação do valor. A ausência dessa
justificativa fundamentada viola não apenas o art. 85, § 2º, do CPC, mas também
o dever constitucional de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX,
CF/88), abrindo margem para críticas doutrinárias e institucionais quanto à
legitimidade da fixação arbitrária.
3. A Jurisprudência do STJ e o
Desafio da Uniformização
A questão da
fixação de honorários advocatícios por apreciação equitativa, em especial nos
casos de atuação restrita ao incidente de desconsideração da personalidade
jurídica, ganhou contornos de repercussão nacional com o julgamento do EREsp
1.880.560/RN, pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça.
Naquele leading
case, a Corte firmou entendimento no sentido de que, quando a atuação do
patrono limitar-se à discussão sobre a legitimidade passiva, sem impugnação ao
crédito, e não houver proveito econômico direto ou quantificável, a fixação
dos honorários deve observar o disposto no art. 85, § 8º, do CPC, ou seja, ser
feita com base em equidade[3].
A tese
jurídica reafirma a linha interpretativa majoritária no Tribunal, que reconhece
a possibilidade de arbitramento equitativo em hipóteses de indeterminação do
valor econômico envolvido. No entanto, a aplicação concreta dessa tese tem
gerado críticas substanciais na doutrina e entre os operadores do direito,
em razão da ausência de balizas normativas claras que orientem o magistrado na
fixação do quantum devido.
Em outras
palavras, o problema não reside propriamente na tese fixada — que é
juridicamente defensável —, mas na ausência de critérios uniformes, objetivos e
transparentes que permitam aplicar a equidade sem que isso implique, na
prática, na atribuição de valores simbólicos ou meramente protocolares. Tal
realidade se agrava quando se observa que, em diversos julgados, os honorários
arbitrados em sede de IDPJ não ultrapassam a faixa de R$ 2.000,00 a R$
5.000,00, ainda que o incidente envolva valores de execução milionários e
atuação altamente especializada.
A problemática
ganha contornos ainda mais delicados diante do obstáculo recursal imposto
pela Súmula 7 do STJ[4],
que veda o reexame de matéria fático-probatória em sede de recurso especial.
Isso significa que, uma vez fixados os honorários por equidade na instância
ordinária, a possibilidade de revisão em instância superior é virtualmente nula,
salvo em hipóteses excepcionais de manifesta violação literal da lei ou
inexistência de fundamentação. Na prática, portanto, a decisão do juízo de
origem torna-se definitiva quanto ao valor da verba honorária, mesmo
quando flagrantemente desproporcional.
Certamente, esse
fenômeno gera um paradoxo sistêmico preocupante: embora o art. 85 do CPC
de 2015 tenha sido concebido para reforçar o caráter remuneratório e digno
da verba honorária, o uso indiscriminado da equidade, aliado à rigidez
recursal, fragiliza o próprio conteúdo normativo da regra, esvaziando o seu
sentido protetivo original.
Além disso, a
ausência de diretrizes interpretativas mais densas favorece a heterogeneidade
decisória entre os tribunais, resultando em uma jurisprudência errática,
que compromete a igualdade material entre jurisdicionados e a
previsibilidade contratual na advocacia. Há situações, por exemplo,
em que a mesma atuação técnica gera honorários de R$ 1.000,00 em um tribunal
estadual e de R$ 10.000,00 em outro, sem que haja qualquer diferença
substancial no conteúdo da demanda. Essa disparidade é incompatível com os
princípios constitucionais da isonomia, da segurança jurídica e da moralidade
administrativa, os quais devem reger a atividade jurisdicional.
Sob o ponto de
vista filosófico, essa realidade entra em tensão com o que Ronald Dworkin
denomina de "igual consideração e respeito": todo cidadão
tem o direito de ser tratado pelo Estado — e, por consequência, pelo Judiciário
— com seriedade moral e coerência institucional[5].
O Estado que fixa valores arbitrários ou irrisórios por um trabalho técnico
relevante não apenas falha em reconhecer a dignidade do advogado, mas transmite
ao jurisdicionado a mensagem de que sua defesa teve pouco ou nenhum valor
intrínseco, o que mina a confiança pública na função judicial.
Portanto, o
verdadeiro desafio posto à jurisprudência superior não é apenas o de
reafirmar a legitimidade da equidade como critério, mas o de construir um
padrão interpretativo confiável, sensível à realidade da atuação advocatícia e
compromissado com os princípios da proporcionalidade, da coerência e da justiça
substancial.
4.
Arbitramento por Equidade: Caminhos para uma Interpretação Constitucionalmente
Adequada
A cláusula de
equidade, prevista no art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil de 2015, deve
ser compreendida à luz do ordenamento jurídico como um instrumento de
justiça distributiva, voltado à realização do direito em contextos de
incerteza quanto ao valor econômico envolvido na causa. Seu uso, portanto, deve
ser excepcional, justificado e compatível com os parâmetros constitucionais
que regem a remuneração da advocacia.
Mais do que um
artifício de conveniência procedimental, a equidade, quando invocada para
arbitrar honorários sucumbenciais, deve operar como um critério orientado
por princípios — e não como um cheque em branco nas mãos do julgador. Como
tal, a sua aplicação precisa respeitar não apenas os critérios legais (art. 85,
§ 2º, CPC), mas sobretudo os princípios constitucionais que asseguram a
dignidade da função advocatícia, a isonomia entre as partes e a integridade do
processo justo.
É nesse ponto
que se revela a necessidade de uma interpretação constitucionalmente
adequada da equidade, conforme ensina Luís Roberto Barroso ao tratar do
princípio da conformidade constitucional: toda norma infraconstitucional
deve ser lida à luz da Constituição, buscando máxima efetividade aos direitos
fundamentais nela consagrados[6].
No caso
específico dos honorários advocatícios, essa leitura implica reconhecer que:
·
O art. 133 da Constituição Federal confere ao
advogado a condição de indispensável à administração da justiça,
assegurando-lhe prerrogativas compatíveis com a essencialidade da função que
exerce;
·
O art. 85 do CPC/2015, ao tratar dos honorários
sucumbenciais, adotou uma orientação remuneratória (e não meramente
indenizatória ou simbólica), como forma de valorizar o trabalho
técnico-jurídico e inibir práticas de fixação aleatória de valores;
·
O art. 22 do Estatuto da Advocacia (Lei n.º
8.906/94) reforça essa diretriz, ao prever que os honorários devem ser “fixados
com moderação, atendidos os elementos previstos no CPC e no Código de Ética e
Disciplina”, preservando a proporcionalidade e a dignidade da profissão.
Dessa forma, a
utilização da equidade como parâmetro para fixação dos honorários não pode
se traduzir em valor simbólico, padronizado ou desvinculado do esforço técnico
exigido, sob pena de se configurar um verdadeiro aviltamento
institucional da advocacia, prática que, lamentavelmente, tem se tornado
comum, sobretudo nos julgamentos de incidentes como o IDPJ.
É necessário
recordar que o princípio da proporcionalidade — em sua dimensão protetiva e
proibitiva de excesso — deve guiar o arbitramento da verba honorária também
quando se invoca a equidade. Remunerações irrisórias afrontam não apenas o
direito subjetivo do profissional, mas enfraquecem a própria estrutura do
processo justo, ao desestimular a atuação diligente em defesa do
jurisdicionado.
Sob a ótica
filosófica, tal como já defendido por Norberto Bobbio[7],
um direito que não se efetiva na prática, por ausência de condições
materiais mínimas, é apenas uma promessa retórica. Se o advogado é
compelido a atuar por valores arbitrados sem relação com o esforço técnico
demandado, cria-se um paradoxo ético-jurídico: o sistema exige excelência
técnica, mas não oferece, em contrapartida, condições mínimas de reconhecimento
dessa entrega.
Em termos
institucionais, a continuidade dessa prática prejudica também a
previsibilidade contratual. A ausência de critérios objetivos no uso da
equidade contamina a confiança legítima que orienta a fixação de cláusulas
honorárias entre advogados e seus clientes, sobretudo na advocacia
contenciosa, onde a sucumbência é frequentemente usada como parte da composição
econômica dos contratos.
Por fim, é
importante destacar que a valorização adequada dos honorários — mesmo sob
arbitramento equitativo — não é um privilégio da classe dos advogados, mas
uma exigência sistêmica de justiça. A defesa técnica qualificada tem custo,
exige preparo, responsabilidade, e deve ser remunerada em conformidade com sua
natureza.
Portanto, o
caminho mais compatível com a Constituição é aquele que reconhece a equidade
como técnica de justiça, mas impõe ao julgador o dever de fundamentar, com base
nos critérios legais e nos princípios constitucionais, a quantia arbitrada.
Quando aplicada de forma consciente, fundamentada e proporcional, a equidade concretiza
o direito; quando aplicada de forma automática e simbólica, o perverte.
5. Conclusões
Não é mais
possível ignorar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica
(IDPJ) se tornou, na prática forense, muito mais do que um mero apêndice do
processo executivo. A sua condução, especialmente quando impõe ao advogado a
missão de defender a exclusão de um terceiro do polo passivo, exige um nível de
complexidade técnica, responsabilidade estratégica e conhecimento jurídico que,
em muitos casos, ultrapassa a própria discussão sobre o mérito da execução.
O que se
discutiu neste artigo não é a legitimidade da equidade como critério de fixação
de honorários — ela é válida, necessária e bem-vinda em muitos contextos. O que
se questiona é o modo como ela vem sendo aplicada: de forma mecânica,
padronizada, sem fundamento específico no caso concreto e, pior, frequentemente
resultando em valores simbólicos que destoam completamente da atuação exigida.
Ao se fixar
valores de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00 como regra — independentemente do grau de
complexidade da demanda — a jurisprudência transforma o que deveria ser exceção
em rotina, e o que deveria ser justiça corretiva em ferramenta de
desvalorização. O problema, portanto, não está na letra da lei, mas na
superficialidade com que vem sendo interpretada.
É nesse ponto
que o Direito precisa reencontrar sua integridade. Como nos ensina Dworkin, o
juiz não decide casos apenas aplicando regras: ele interpreta princípios,
leva em consideração o valor das instituições e busca coerência no sistema.
Decidir, portanto, não é apenas aplicar o art. 85, § 8º, do CPC — é aplicá-lo à
luz da Constituição, dos deveres da magistratura, da dignidade da advocacia
(art. 133 da CF), e da exigência de motivação consistente (art. 93, IX, CF).
Do ponto de
vista prático, essa banalização da equidade tem efeitos corrosivos. Ela
prejudica a confiança nos contratos advocatícios — que se tornam imprevisíveis.
Ela enfraquece o papel do advogado como agente de transformação dentro do
processo. E ela compromete a própria percepção de justiça, tanto para o
profissional que atua quanto para o jurisdicionado que se vê amparado por uma
defesa que, ao fim, é remunerada com indiferença institucional.
Mais do que um
problema remuneratório, estamos diante de uma questão institucional e ética:
o sistema judicial pode, sob o rótulo da equidade, manter uma estrutura de
fixação de honorários que ignora o conteúdo da prestação jurisdicional e
desestimula a excelência técnica?
A resposta,
a meu ver, é negativa.
Se há algo que
este debate revela é a necessidade urgente de uma mudança de postura
interpretativa. O STJ deu um primeiro passo ao reconhecer a aplicação da
equidade nos casos de IDPJ, mas é preciso ir além: construir critérios,
promover uniformidade, exigir fundamentação qualificada. Não basta
reconhecer a ferramenta — é preciso saber utilizá-la com justiça.
Valorizar a
advocacia nesses incidentes não é proteger uma classe, é proteger o processo, a
função jurisdicional e, em última instância, o próprio jurisdicionado, que tem
o direito de ser defendido com seriedade — e ver essa defesa reconhecida com
dignidade.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.
Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Livro V,
cap. 10.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação
e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
BOBBIO, Norberto. Teoria da
norma jurídica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA,
Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Comentários
ao Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2023. v. 2.
DWORKIN, Ronald. Levando os
direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MARINONI, Luiz Guilherme;
ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. v. 3.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do
direito. Coimbra: Almedina, 2016.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(Brasil). EREsp 1.880.560/RN, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção,
julgado em 24 abr. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 5
jun. 2024.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(Brasil). Súmula 7: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso
especial. Disponível em: https://scon.stj.jus.br. Acesso em: abr. 2025.
[1] RADBRUCH,
Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 2016, p. 115–117.
[2]
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo
Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, v. 3, p.
427.
Os autores abordam, com profundidade, a natureza jurídica dos honorários
advocatícios no processo civil contemporâneo, tratando da função remuneratória
e das consequências práticas da aplicação da equidade no arbitramento de
honorários.
[3]
1. STJ. EREsp 1.880.560/RN,
Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 24/04/2024, DJe
05/06/2024.
[4]
Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça:
“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”
Enunciado jurisprudencial
consolidado que limita a revisão do quantum dos honorários fixados por equidade
nas instâncias ordinárias, salvo nos casos de manifesta violação à norma ou
ausência de fundamentação.
[5] DWORKIN,
Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 272–278.
Dworkin defende a ideia de que o Estado deve tratar todos os cidadãos com igual
consideração e respeito, princípio que se reflete na exigência de decisões
judiciais coerentes e fundamentadas, especialmente em temas sensíveis como a
remuneração da advocacia.
[6]
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição:
Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2022, p. 98–101.
O autor desenvolve a teoria da interpretação conforme a Constituição,
defendendo que toda norma infraconstitucional deve ser lida à luz dos
princípios constitucionais, com destaque para a máxima efetividade dos direitos
fundamentais e a coerência sistêmica das decisões judiciais.
[7]
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Brasília: UNB, 2006,
p. 89–93.
Bobbio destaca que um direito não concretizado é um direito apenas formal. A
ausência de condições materiais mínimas para a atuação jurídica efetiva — como
a remuneração justa do advogado — compromete a realização prática da justiça.