Assédio Judicial e a Responsabilidade Ética da
Jurisdição
Resumo
O presente artigo
analisa a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6792/DF à luz da filosofia
do direito e da teoria constitucional contemporânea. O julgamento enfrentou o
assédio judicial por meio da pulverização de ações como forma de cerceamento da
liberdade de imprensa, reconhecendo a legitimidade da coletivização processual
como instrumento de contenção. Com base em autores como Dworkin, Bobbio,
Habermas e Ferrajoli, sustenta-se que a jurisdição deve ser compreendida não
apenas como técnica, mas como prática ética vinculada à integridade do sistema
constitucional. O texto propõe uma releitura das garantias processuais a partir
de uma perspectiva substancial, comprometida com a proteção de direitos
fundamentais e a efetividade da democracia.
Palavras-chave:
assédio judicial; jurisdição ética; coletivização; STF; garantismo; filosofia
do direito.
1. INTRODUÇÃO
O fenômeno do assédio judicial — caracterizado pelo
ajuizamento coordenado, massivo e pulverizado de ações com propósito
intimidatório — desafia os paradigmas tradicionais do direito processual. A
decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6792/DF, ao enfrentar
diretamente essa prática, evidencia a necessidade de revisitar o papel da
jurisdição no Estado Democrático de Direito.
Mais que uma resposta procedimental, o que está em jogo é a
concepção ética e constitucional da jurisdição enquanto prática institucional
responsável pela realização da justiça.
2. Assédio judicial e a instrumentalização do
processo
O assédio judicial constitui uma forma contemporânea de litigância abusiva, caracterizada pela
utilização estratégica do direito de ação não com o propósito de buscar a
tutela jurisdicional legítima, mas como meio
de intimidação, silenciamento e desgaste do réu — especialmente quando
este exerce função crítica em regimes democráticos, como ocorre com
jornalistas, acadêmicos, ativistas ou veículos de imprensa.
Trata-se de um fenômeno que subverte a função
constitucional do processo civil. Em lugar de ser instrumento de pacificação
social e de proteção a direitos subjetivos, o processo é transformado em mecanismo de opressão institucionalizada,
operando sob a aparência formal de legalidade, mas com finalidade
essencialmente antidemocrática. Essa prática, à semelhança do que se observa em
experiências de lawfare,
converte o aparato estatal em vetor de violação de garantias fundamentais, em
especial as liberdades de expressão,
crítica e informação.
O traço distintivo do assédio judicial está na
pulverização de demandas idênticas ou
similares, ajuizadas simultaneamente em diferentes comarcas e contra
um mesmo réu. Ainda que isoladamente legítimas, tais ações, quando examinadas
no conjunto, revelam um uso desviado da
jurisdição. O objetivo real não é o reconhecimento judicial de um
direito material, mas o colapso da
capacidade defensiva do demandado, mediante o acúmulo de custas,
despesas com deslocamento, contratação de advogados em múltiplos foros, e o
consequente risco de inibição da
liberdade crítica.
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar esse
padrão de conduta na ADI 6792/DF,
reconheceu o assédio judicial como uma
forma de instrumentalização perversa do processo, cuja repressão é
compatível com os princípios da proporcionalidade, da boa-fé processual e da
vedação ao abuso de direito. A Corte observou que, em situações dessa natureza,
a proteção ao direito de ação não pode ser dissociada de sua finalidade constitucional. Como
explicitado no voto do Ministro Relator:
“O direito de ação não pode ser compreendido como
carta branca para constranger ou silenciar terceiros por meio de processos
judiciais articulados com esse fim.”
(ADI 6792/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 04.04.2025)
Portanto, o assédio judicial é incompatível com o modelo de processo justo,
uma vez que compromete o contraditório efetivo, rompe com a isonomia processual
e gera efeito intimidatório estrutural.
Ocorre, assim, uma inversão da função originária da jurisdição: o poder-dever
de julgar deixa de ser mecanismo de contenção do arbítrio para converter-se em instrumento de opressão processual disfarçada de
legalidade.
Esse uso abusivo do direito de ação — ainda
que tecnicamente conforme às regras de competência territorial e instrumental —
fere diretamente os princípios fundamentais da Constituição da República (art.
5º, incisos IV, IX e XXXV), pois não se pode admitir que a estrutura do Estado
seja manipulada para hostilizar direitos
individuais sob o pretexto de sua tutela formal.
A compreensão dessa realidade exige um olhar
hermenêutico que vá além do formalismo processual. É necessário considerar os efeitos materiais da litigância pulverizada
sobre a parte demandada, os custos sociais da saturação da máquina judiciária
e, sobretudo, a degradação da confiança
no sistema judicial como espaço de racionalidade democrática.
Nesse cenário, a instrumentalização do
processo, via assédio judicial, constitui
grave violação à moralidade institucional da jurisdição, e impõe ao
Poder Judiciário — enquanto garantidor da ordem constitucional — o dever de
atuar com firmeza. Proteger o processo é,
aqui, proteger a democracia.
3. A
Resposta do STF na ADI 6792/DF: Coletivização e Competência Constitucionalmente
Justificada
Ao julgar a ADI 6792/DF, o Supremo Tribunal Federal
enfrentou uma realidade singular: o uso do aparato jurisdicional como mecanismo
de dispersão estratégica de ações com identidade fática e jurídica substancial.
Diante desse contexto, a Corte reconheceu, com precisão técnico-constitucional,
que tal prática impõe uma resposta institucional capaz de preservar a
unidade da jurisdição, a coerência da resposta judicial e a funcionalidade do
sistema de justiça.
A decisão não se limitou a identificar o problema. Ela
estruturou uma solução: a possibilidade de reunião processual das ações
reiteradas perante o foro do domicílio do réu, inclusive de ofício,
sempre que a dispersão configurar risco efetivo à integridade do processo e à
coerência do tratamento judicial da controvérsia. A Corte não inovou ex nihilo:
extraiu essa resposta do próprio sistema normativo vigente, especialmente dos
dispositivos que tratam da conexão processual (art. 55 do CPC), modificação
da competência (art. 65) e, sobretudo, da cooperação judiciária nacional
(arts. 67 a 69).
Esse movimento interpretativo do STF representa um avanço
hermenêutico em direção a uma leitura substancial e coordenada do processo,
onde a forma processual serve à realização dos direitos, e não à perpetuação de
distorções. Em outras palavras, o Tribunal afirma que a competência não é um
fim em si mesmo, mas instrumento de racionalização, proteção da isonomia e
efetividade jurisdicional.
Importante sublinhar: a Corte não afastou o princípio do
juiz natural, mas procedeu a uma reinterpretação harmônica desse postulado com
outros valores constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, CRFB), a efetividade da jurisdição (art. 5º, XXXV) e a igualdade
das partes no processo (art. 5º, I e LIV). Conforme apontado no voto do
Relator, Ministro Dias Toffoli:
“O juiz natural não é uma abstração desconectada da finalidade do processo. Ele deve ser compreendido dentro de uma racionalidade que proteja o réu contra práticas abusivas, ainda que disfarçadas de legalidade.”
(ADI 6792/DF, j. 04.04.2025)
A decisão tem ainda outra virtude: fortalece o
poder-dever dos juízos na coordenação e cooperação entre varas distintas,
promovendo a unidade decisória e a economia processual. A ênfase do STF na
viabilidade da atuação de ofício dos magistrados nesses casos confirma o
compromisso do Judiciário com a responsabilidade institucional e a
integridade do sistema, mesmo quando isso exige soluções fora da ortodoxia
territorial clássica.
Portanto, a resposta do STF na ADI 6792/DF deve ser lida
como um gesto de afirmação da função constitucional do processo,
especialmente em tempos de judicialização massiva com pretensões de sufocamento
institucional. Ao articular coletivização, competência excepcional e
racionalidade sistêmica, o Tribunal não cria um novo regime, mas realiza
a Constituição pela via da integridade hermenêutica.
Trata-se, em última análise, de um marco de maturidade
constitucional, que confere ao Poder Judiciário a legitimidade necessária
para preservar sua própria função diante da litigância deformada.
4.
Jurisdição e Filosofia do Direito: Reconstruindo o Sentido Ético do Processo
Se quisermos compreender com profundidade o que está em jogo
no julgamento da ADI 6792/DF, é necessário ir além da dogmática
processual e ingressar no campo da Filosofia do Direito. Afinal, quando se
discute a utilização abusiva do processo judicial para perseguir, silenciar ou
sufocar, o debate já não é apenas sobre competências, ritos e fórmulas.
Trata-se de algo muito mais profundo: qual é
o papel ético da jurisdição em um Estado Democrático de Direito?
Essa pergunta, caro leitor, exige uma reflexão que desloque
o foco da técnica para a teoria, da regra para o princípio, da forma para o
conteúdo. E é nesse deslocamento que a Filosofia do Direito se revela
imprescindível.
Norberto Bobbio, em sua clássica reflexão sobre o
sistema jurídico moderno, advertia que todo ordenamento opera sob uma tensão
constante entre garantias individuais e eficácia institucional. Para
ele, o verdadeiro desafio da justiça não está na aplicação acrítica de normas,
mas na sua harmonização com os valores que sustentam o sistema. A aplicação
cega e descontextualizada de garantias processuais — como a rigidez da
competência territorial — pode, paradoxalmente, servir ao arbítrio,
quando utilizada para viabilizar práticas de assédio judicial. É a forma
servindo à destruição da substância.
Ronald Dworkin, por sua vez, nos oferece uma chave de
leitura especialmente útil. Para o autor, os direitos fundamentais não são
meras regras formais, mas sim princípios jurídicos — dotados de peso
moral, que exigem ponderação, argumentação racional e responsabilidade ética
no momento de sua aplicação. No contexto do assédio judicial, isso significa
dizer que a garantia do juiz natural, embora central, não pode ser tratada
como dogma absoluto, especialmente quando está sendo invocada para impedir
a reação judicial a uma prática abusiva e coordenada de litigância predatória.
Dworkin nos lembra que aplicar o direito corretamente é
um ato de integridade moral. E o que o Supremo Tribunal Federal fez na ADI
6792/DF foi exatamente isso: proteger os princípios constitucionais da
jurisdição contra sua manipulação. A Corte compreendeu que o respeito ao juiz
natural não implica ceder à fragmentação artificial de ações como estratégia de
coerção.
Já Jürgen Habermas, ao tratar do direito como forma
institucional do discurso racional, sustenta que a legitimidade do sistema
jurídico depende de sua capacidade de garantir a comunicação livre,
simétrica e igualitária entre os sujeitos. Ora, o que ocorre no assédio
judicial é o contrário: a saturação do Judiciário, pela via de ações múltiplas,
quebra a integridade comunicativa do processo. Quando o contraditório é
sufocado pela sobrecarga, quando o réu é obrigado a se defender simultaneamente
em dezenas de comarcas, o que temos não é mais um processo — é um ritual
jurídico sem discurso autêntico. É o simulacro da jurisdição.
Por fim, Luigi Ferrajoli nos oferece a distinção
decisiva entre o garantismo autêntico e o garantismo degenerado.
O primeiro — verdadeiro pilar de um Estado constitucional — protege o indivíduo
contra os abusos do poder, inclusive o poder jurisdicional. Já o segundo, ao
absolutizar as formas processuais e desconsiderar sua finalidade protetiva,
transforma o direito em ferramenta de legitimação da opressão. Quando o
Judiciário se recusa a reagir ao assédio judicial com base em garantias formais
— como a imutabilidade da competência — ele deixa de ser garantista e passa
a ser cúmplice da arbitrariedade travestida de formalidade.
A decisão do STF, portanto, não apenas se alinha a uma
concepção ética do processo — ela reafirma o compromisso do Poder Judiciário
com a proteção ativa das liberdades fundamentais. Trata-se de uma
postura que rompe com o formalismo ritualista e devolve à jurisdição o
seu verdadeiro papel: o de guardiã da democracia, da justiça e da igualdade
material entre os sujeitos processuais.
Você, leitor, que milita diariamente nos tribunais, sabe que
o processo civil é cada vez mais um espaço de disputa de poder. E é justamente
por isso que ele precisa ser continuamente reconstruído à luz dos princípios
da Filosofia do Direito, sob pena de degenerar em técnica vazia, disponível
aos que a manipulam.
A ADI 6792/DF não inaugura um novo direito. Ela
apenas recoloca o processo no lugar de onde
ele nunca deveria ter saído: como instrumento ético de realização da
justiça constitucional.
5. Conclusão: A Função Pública da Jurisdição e o
Dever de Reagir
A decisão proferida na ADI 6792/DF representa, em sua
essência, um marco de transição hermenêutica: desloca-se o olhar
tradicional sobre o processo — como mera técnica procedimental — para uma
leitura ética, funcional e constitucionalmente comprometida com a proteção
contra abusos sistematizados. Ao reconhecer a legitimidade da coletivização
processual como forma de resposta à litigância predatória, o Supremo Tribunal
Federal recoloca a jurisdição no seu verdadeiro lugar institucional: uma
estrutura de contenção ao arbítrio, e não um instrumento à disposição dos
interesses que o perpetuam.
O processo não pode ser neutro diante da injustiça. Quando
utilizado como ferramenta de opressão — como ocorre nos casos de assédio
judicial pulverizado, territorialmente manipulado, mas coordenado em sua
finalidade — o sistema precisa reagir. E essa reação não é política, nem
ativista: é constitucional. É expressão do dever institucional do
Judiciário de proteger o processo contra o seu próprio desvirtuamento.
A jurisdição, enquanto prática institucional, carrega um
compromisso com os valores que estruturam o Estado Democrático de Direito: liberdade,
igualdade, dignidade, racionalidade e justiça. O juiz — especialmente o
juiz constitucional — não pode se esconder atrás da inércia procedimental ou
da neutralidade formal quando a própria integridade do sistema está em jogo.
Como guardião da Constituição, tem o dever de agir.
Mais do que uma simples decisão sobre competência
territorial, a ADI 6792/DF reafirma que o processo é trincheira — e não
trinchete. É instrumento de emancipação — e não de silenciamento. É
espaço de discurso — e não de dispersão estratégica.
Trata-se, portanto, de uma reafirmação da jurisdição como
função pública dotada de responsabilidade ética, fundada não apenas na
literalidade da lei, mas na conformidade moral com os princípios
constitucionais que conferem legitimidade ao exercício do poder jurisdicional.
A lição que fica é clara: a legalidade sem integridade é
forma sem alma; a técnica sem compromisso é caminho aberto à injustiça. A
resposta institucional que emerge da ADI 6792/DF devolve à jurisdição seu papel
ativo na defesa da democracia e dos direitos fundamentais. E nos obriga, como
operadores do Direito, a um posicionamento claro: não há lugar para
neutralidade quando a Constituição está sendo instrumentalmente desafiada.
Essa é, afinal, a missão contemporânea da jurisdição:
proteger a si mesma para continuar protegendo a todos.
Referências
BOBBIO, Norberto.
Teoria da norma jurídica. 10. ed. São Paulo: EDIPRO, 1995.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v.
1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
STF. ADI 6792/DF. Rel. Min. Dias Toffoli. Plenário. Julgado em
04/04/2025. Disponível em: https://jurishand.com/jurisprudencia-stf-6792-de-04-abril-2025
. Acesso em: 06 jun. 2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário