A recuperação judicial, como instituto jurídico voltado à preservação da empresa e da atividade produtiva, não se presta — e jamais se prestou — à blindagem indiscriminada de coobrigados ou terceiros garantidores, como avalistas. Esta é a linha adotada com clareza e firmeza pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), ao julgar a Apelação Cível nº 1001371-30.2021.8.26.0373, confirmando decisão que negou o pedido de suspensão da execução ajuizada contra avalistas de cédula de crédito bancário, não obstante a recuperação judicial da empresa devedora principal.
Na origem, a execução foi proposta pelo Banco Pine S.A. contra produtores rurais que prestaram aval em cédula de crédito bancário. Os executados alegaram que, após o deferimento da recuperação judicial da empresa devedora, seria aplicável o art. 6º da Lei nº 11.101/2005, impondo a suspensão do feito executivo. Invocaram ainda a essencialidade de bens penhorados à atividade rural.
O TJSP, por meio de voto da lavra do Des. Fortes Barbosa, afastou integralmente os argumentos de defesa, com base em dois fundamentos centrais: a autonomia da obrigação do avalista e a validade da penhora anterior ao deferimento da recuperação.
O relator foi direto ao afirmar que:
“Não se deve admitir que a empresa em recuperação judicial utilize-se do procedimento recuperacional para blindar os seus avalistas, que assumiram pessoalmente o pagamento da dívida contraída.”
(TJSP, Apelação Cível nº 1001371-30.2021.8.26.0373, rel. Des. Fortes Barbosa, 28ª Câmara de Direito Privado, j. 12.09.2022)
O Tribunal reconheceu que a obrigação assumida pelo avalista é de natureza autônoma, prevista no art. 30 da Lei Uniforme de Genebra (Decreto nº 57.663/66), e não depende da obrigação principal da empresa devedora. Sendo assim, o deferimento da recuperação judicial não suspende a execução movida contra o garantidor pessoal, salvo demonstração inequívoca de que o crédito decorre diretamente da atividade-fim da empresa — o que, no caso, não restou provado.
Esse entendimento está respaldado em sólida jurisprudência da própria Corte, que já decidiu, por exemplo:
“A recuperação judicial não impede a execução contra avalista que assumiu obrigação pessoal. A suspensão prevista no art. 6º da Lei 11.101/2005 dirige-se ao devedor principal e não alcança os coobrigados.”
(TJSP, Apelação Cível nº 1005745-63.2016.8.26.0361, rel. Des. César Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 25.09.2018)
Da mesma forma, em outros julgados relatados pelo próprio Des. Fortes Barbosa, firmou-se que:
“Inviável a extensão dos efeitos da recuperação judicial ao avalista, sob pena de distorção do próprio regime jurídico recuperacional.”
(TJSP, Apelação Cível nº 1000356-17.2018.8.26.0271, 28ª Câmara de Direito Privado, j. 17.08.2021)
E também que:
“A obrigação assumida pelo avalista é autônoma e não está sujeita ao regime jurídico da recuperação judicial.”
(TJSP, Apelação Cível nº 1000653-07.2017.8.26.0271, 28ª Câmara de Direito Privado, j. 27.04.2021)
O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) compartilha dessa leitura, conforme consolidado no leading case:
“As garantias pessoais, como o aval e a fiança, não se submetem, em regra, aos efeitos da recuperação judicial.”
(STJ, REsp 1.333.349/SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. 24.06.2014, DJe 01.08.2014)
Além da execução contra os avalistas, o TJSP também examinou a validade da penhora realizada anteriormente ao deferimento da recuperação. Os executados alegaram que os bens seriam essenciais à atividade rural e, por essa razão, estariam protegidos pelo chamado stay period. O argumento foi rechaçado, por ausência de prova efetiva da essencialidade do bem à atividade produtiva. O relator destacou que o deferimento da recuperação judicial não tem efeito retroativo e não invalida penhora regularmente realizada antes de sua concessão.
Essa posição é plenamente alinhada à melhor doutrina e preserva o núcleo da segurança jurídica: o credor diligente que promove execução e logra constrição anterior ao deferimento da recuperação deve ter preservado o ato executivo praticado, sobretudo quando não se comprova o caráter essencial do bem penhorado à atividade econômica.
Em síntese, o acórdão do TJSP representa firme reafirmação da separação entre a esfera patrimonial da empresa devedora e aquela dos seus garantidores pessoais, reafirma a força executiva do aval, e protege os efeitos válidos de penhora realizada em tempo anterior ao início do processo recuperacional. A decisão prestigia a coerência do sistema jurídico e delimita os efeitos da recuperação judicial aos exatos termos da lei, sem admitir extensões que, na prática, comprometem o equilíbrio das relações contratuais e a previsibilidade do crédito.
Essa jurisprudência tem relevante impacto prático para instituições financeiras, investidores e credores estratégicos, que muitas vezes se veem paralisados diante do deferimento de uma recuperação judicial. A mensagem dos tribunais é clara: nem todo crédito está sujeito ao plano recuperacional; nem toda garantia é atingida pelo stay period.
Nosso escritório oferece atuação altamente especializada na execução de garantias pessoais e preservação de penhoras em contextos de recuperação judicial, com foco em efetividade do crédito e proteção da posição jurídica do credor. A leitura técnica das decisões e a pronta reação jurídica são, muitas vezes, o diferencial entre o recebimento do crédito e sua perda definitiva.
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